Título: INDENIZAÇÃO CHEGA AGORA A FILHOS DE TORTURADOS
Autor: Evandro Éboli
Fonte: O Globo, 30/10/2005, O País, p. 15
Comissão de Anistia reconheceu condição de anistiado pela primeira vez na semana passada e recebe mais casos
-guerrilheiro Antônio Lucena, foram presos após ver o pai ser morto. Maria da Graça Senna mostra o passaporte do filho com o carimbo de deportação
BRASÍLIA. Os três filhos pequenos do ex-guerrilheiro Antônio Lucena, braço direito do capitão Carlos Lamarca na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), foram parar na cadeia depois de verem seu pai ser morto na porta de casa pelos militares, em fevereiro de 1970, em Atibaia, interior de São Paulo. Hoje, 35 anos depois, casos como os deles, de filhos de militantes políticos e também vítimas da repressão militar, começam a chegar à Comissão de Anistia.
Na semana passada, a comissão aprovou, pela primeira vez, a condição de anistiado político e o direito à indenização de filhos de guerrilheiros. Vladimir e Isabel Maria Gomes da Silva, filhos de Virgílio Gomes da Silva, que comandou o seqüestro do embaixador americano Charles Elbrick, foram os primeiros beneficiados pela lei. Para o presidente da Comissão de Anistia, Marcelo Lavenère, a decisão é histórica e demonstra que a lei assegura também o direito de filhos de militantes reivindicarem anistia e indenização.
¿ Não há dúvida que a Lei de Anistia pode ser aplicada a essas pessoas que sofreram na tenra idade, quando crianças. É indiscutível que muitas delas sofreram e podem pleitear o reconhecimento da comissão dessa perseguição ¿ disse Lavenère.
Filhos obrigados a assistir tortura
Crianças e adolescentes filhos de comunistas também sofreram privações, foram presos, perseguidos, torturados, exilados e eram obrigados, como seus pais, a trocar de identidade para fugir do cerco dos militares. A história dos anos da ditadura mantém quase oculto o que se passou com eles. Mas não era incomum os militares prenderem crianças junto com os pais. Os filhos eram usados durante as sessões de tortura e obrigados assistir essas atrocidades. Era o meio de tentar se arrancar confissões dos comunistas.
Presa pela Operação Bandeirantes (Oban) em dezembro de 1972, em São Paulo, a militante do Partido Comunista Maria Amélia Almeida Teles viu seus dois filhos serem levados também pelos militares. Janaína, com 4 anos, e Edson Luiz, com 5 anos, foram parar numa casa cercada de militares, onde ficavam trancados num quarto. Com freqüência, eram levados à cela da mãe para vê-la torturada, no DOI-Codi. Janaína se lembra que os militares diziam que seus pais os abandonaram e que não iriam voltar para buscá-los.
¿ A tortura fica para o resto da vida. Ficou em mim e também nos outros. O que aconteceu conosco foi absolutamente violento. A decisão sobre os filhos do Virgílio foi ótima. Nos estimula a fazer o mesmo. O Estado tem a obrigação de reconhecer sua culpa. E a reparação em dinheiro não diminui moralmente a causa ¿ disse Janaína Teles, hoje com 38 anos.
Os filhos de militantes políticos presos acham que perderam a infância e se tornaram adultos muito cedo ao viverem o drama da resistência à ditadura. Depois de presos, só reencontrariam os pais meses ou anos depois. Existem casos de filhos presos que foram incluídos nas listas de prisioneiros que seriam trocados por autoridades estrangeiras seqüestradas, algo que, até então, só se imaginava ocorrer com adultos.
João Carlos Grabois, hoje com 33 anos, nasceu na prisão. É filho do casal André Grabois e Criméia Almeida, que lutou na Guerrilha do Araguaia. André é um desaparecido político. Criméia estava presa em Brasília. João Carlos nasceu no hospital de um pelotão da capital. A Anistia Internacional tentou a custódia do bebê para livrá-lo desse tipo de ação dos militares.
¿ Meu filho era usado como instrumento de tortura contra mim. Foi o único que tive. Com o que ocorreu me desinteressei em engravidar novamente ¿ conta Criméia.
Militante de organizações como Ação Popular (AP) e VPR, Maria da Graça Senna ficou presa durante sete anos. Foi torturada e viveu no exílio na Europa. Ela sofre de leucemia. Enviou seus dois filhos ao Brasil, em 1979, antes da Lei da Anistia, para que os avós cuidassem das crianças. O governo militar não os aceitou e os enviou de volta para a Alemanha. Júlio tinha apenas seis meses e Miguel, 4 anos. No passaporte deles, ficou carimbada a deportação. Os filhos vivem hoje na Espanha. Ela irá incentivá-los a buscar a reparação, na Comissão de Anistia.
¿ Quem sofreu a dor daqueles anos deve pleitear seus direitos ¿ disse Maria da Graça.
A militante foi anistiada ano passado. Com a indenização que recebeu conseguiu fazer uma transplante de medula, em Cuba, e hoje não sofre tanto com a doença. Antes da operação, ela sentia fortes dores e desmaiava com freqüência.
A militante Gilse Cosenza, que atuou em várias organizações, conta que comprava caderno de caligrafia e ensinava suas duas filhas, Juliana, de 4 anos, e Gilda, de 2 anos, a assinarem as várias identidades que tinham que assumir. Era para decorar os novos nomes. Gilse foi presa e torturada:
¿ Minhas filhas viveram uma infância clandestina. Tiveram que aprender regras de segurança novinhas.
Presidente do grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo, a ex-militante Rose Nogueira ajuda, como voluntária, na elaboração de processos para a Comissão de Anistia. Ela foi a responsável pelo caso de Virgílio. Mas tem dificuldade em lidar com sua própria situação. Ela atuou na Ação Libertadora Nacional (ALN), com Carlos Marighella. Foi presa um mês depois de seu filho nascer, em 1969. O bebê era levado na cadeia para ser amamentado. Ela se emociona quando lembra a história.
¿ Não consigo nem falar muito sobre o caso de meu filho, imagina elaborar um processo para ser julgado na comissão. Seria muito doloroso.
Seu filho, Carlos Guilherme, está hoje com 36 anos. É dele a decisão de requerer anistia e indenização na comissão.
Para o presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, Augustino Veit, a decisão sobre os filhos de Virgílio abre o caminho para outros processos:
¿ O transtorno causado aos familiares de torturados não se apaga nunca mais. É mais do que justo que essas crianças sejam reparadas e o Estado reconheça sua culpa.