Título: A TRAJETÓRIA DO FRANZINO ARTICULADOR DO BEM
Autor: Aydano André Motta
Fonte: O Globo, 30/10/2005, O País, p. 16

`Um abraço, Betinho¿, lançado nos 70 anos de nascimento do sociólogo, conta a história das lutas do irmão do Henfil

Um filho do verde esperança

Não foge à luta, vem lutar

Então verás um dia

O cidadão e a real cidadania

Veio do carnaval o melhor emblema para decifrar um dos personagens mais encantadores da história política brasileira. ¿Verás que um filho teu não foge à luta¿, inesquecível desfile de 1996 do Império Serrano, levou à Sapucaí uma minibiografia, em ritmo de samba, de alguém que passou a vida a articular, a juntar forças para fazer o bem. No caminho, ainda foi precursor ao enxergar mazelas sociais que virariam agendas oficiais somente alguns anos depois. A principal delas, a fome.

A história resumida que emocionou a avenida emerge cheia de detalhes e revelações em ¿Um abraço, Betinho¿, biografia do sociólogo Herbert de Souza organizada, a partir do arquivo dele, pelas pesquisadoras Dulce Pandolfi e Luciana Heymann, do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas. Betinho completaria 70 anos na quinta-feira, data que motivará uma série de eventos e homenagens.

Na obra ¿ patrocinada pela Caixa Econômica ¿ a trajetória do ¿irmão do Henfil¿ (na descrição de outro hino, ¿O bêbado e a equilibrista¿) é contada por diferentes vozes: a do próprio sociólogo (em entrevistas, livros, artigos e cartas); de Maria, sua mulher; de parentes e amigos. Foi dividida em seis capítulos: ¿A aventura do existir¿, sobre a vida de Betinho; ¿O Brasil fora do Brasil¿ (o exílio); ¿Luta pela terra¿, (a batalha pela reforma agrária); ¿Campanha contra a fome¿, a causa mais famosa; ¿O defensor do Rio¿; e ¿Aids: o desafio da vida¿.

¿Aspecto de pouca saúde. Introvertido¿

Doado ao CPDOC, o arquivo, com cerca de dez mil documentos, guarda preciosidades. Uma delas é o documento oficial do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), com a descrição de Betinho. ¿Olhos: castanhos claríssimos (quase ouro); compleição: bem franzino (semi-esquálido); (...) Aspecto de pouca saúde. Introvertido¿.

O sociólogo estava entre os primeiros perseguidos pelo regime militar inaugurado em 1964. Ele ficou clandestino até 1971, quando foi para o Chile, vagando depois por Panamá, Canadá, Escócia e México, entre outros países. Na volta, o sociólogo trouxe idéia inovadora na bagagem ¿ a organização não governamental, ONG, materializada no Ibase, a trincheira de onde ele liderou a campanha contra a fome, sua causa mais famosa.

¿ A militância dele vem da doença e da religião, presenças marcantes desde cedo. E marca a luta contra pobreza, que o acompanhou, em vários formatos, por toda a vida ¿ explica Dulce Pandolfi, também diretora do Ibase.

A personalidade combativa do sociólogo formou-se ainda na adolescência. Uma tuberculose contraída aos 15 anos obrigou a um confinamento num quarto nos fundos de sua casa até os 18. Na clausura, leu obsessivamente. No fim, escreveu carta a um jornal católico, comunicando seu inconformismo diante da imoralidade do mundo. Nascia a atitude que comandou sua vida. A hemofilia e todas as doenças decorrentes dela jamais foram adversárias.

¿ A saúde frágil foi o combustível que Betinho usou para lutar em várias frentes, todas combinadas. Ele jamais se conformou. Sempre repetia: ¿Tenho que ser indignado¿ ¿ conta Dulce. ¿ Ainda jovem, foi trabalhar numa fábrica de porcelana e, para facilitar sua tarefa, criou uma máquina que otimizou a produção. ¿Eu querendo acabar com o capitalismo e melhorando a produtividade do meu patrão¿, constatou depois ¿ relata ela.

A obra descreve o estilo inovador de fazer política ¿ sem concorrer em eleições, nem ocupar cargos no Executivo. Desde a criação, no exílio, de entidades como o Latin American Research Unit (Laru), ao Ibase e à Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids), na volta ao Brasil, o caminho adotado sempre foi o de aglutinar.

¿Eu digo que às vezes eu sinto um misto de amor e ódio pelo Brasil! (...) Amor, porque eu sei que aqui existe uma imensa população, com uma imensa generosidade, com uma imensa capacidade de fazer, de mudar. Mas ódio também, porque sua elite dominante consegue realizar as coisas mais bárbaras que se possa ter imaginado¿, escreveu o sociólogo, num valioso resumo do país que passou a vida tentando mudar.