Título: Crédito farto, calote recorde
Autor: Luciana Rodrigues, Patricia Eloy e Aguinaldo Novo
Fonte: O Globo, 30/10/2005, Economia, p. 33

Empréstimos crescem 30%, brasileiro se endivida e cheque sem fundos sobe 21% no mês

Afarra do crédito fácil pode estar perto do fim e o aumento recorde da inadimplência já preocupa financeiras e lojistas. Após uma expansão superior a 30% no volume de financiamentos desde janeiro, o consumidor chega às vésperas das festas de fim de ano no limite de sua capacidade de endividamento. Grandes redes de varejo perceberam isso e já oferecem pagamento para só daqui a 120 dias. As financeiras, por sua vez, temem que, passada a euforia de fim de ano, o calote dispare no início de 2006.

Informações coletadas pela Telecheque ¿ empresa de verificação de crédito ¿ mostram um aumento de 21% este mês, até o dia 20, no número de pessoas inscritas no cadastro de cheques sem fundos do Banco Central (BC). É uma taxa duas vezes superior aos 8% de setembro e só igualável aos 23% registrados em março, mês em que tradicionalmente a inadimplência cresce.

¿ Houve um boom de crédito, com o desconto em folha e com a concorrência agressiva dos bancos que fizeram parceria com o comércio. Mas o emprego e a renda não subiram no mesmo ritmo e agora esse pessoal está com a corda esticada ¿ avalia o vice-presidente da Telecheque, José Antônio Praxedes Neto. ¿ Estamos apreensivos porque poderemos ter um grande aumento do risco (ou seja, inadimplência) no começo de 2006.

Varejo e construção: clientes esgotados

Nas financeiras, a inadimplência também bateu no teto. José Arthur Assunção, vice-presidente da Fenacrefi, que reúne as empresas do setor, afirma que o calote nas linhas de crédito pessoal chegou a 18% no início de outubro. Até o início do ano, as taxas estavam em 12% e, antes de 2000, eram de cerca de 3%.

¿ Atingimos o nível mais alto dos últimos dez anos. É um patamar preocupante e que pode estourar em 2006. Isso tudo retarda o processo de queda dos juros dos empréstimos, pois as financeiras compensam a inadimplência mantendo as elevadas taxas cobradas ¿ explica Assunção.

Os especialistas acreditam que, neste fim de ano, o décimo terceiro e a renda extra nas atividades de Natal poderão adiar uma alta mais forte do calote para o início de 2006, quando contas como IPVA, matrícula escolar e IPTU pesam no orçamento. Principalmente porque cresceram, no varejo, os planos de parcelamento sem entrada. O volume de cheques para 90 dias, que no ano passado respondia por 6,4% do total, este ano subiu para 7,44%.

O fôlego menor dos consumidores para se endividar já começa a se refletir na atividade econômica. Segundo analistas e empresários, tem havido queda constante de vendas no atacado em setores como alimentos, vestuário, produtos de higiene e limpeza e materiais de construção. No varejo, supermercados enfrentam uma inadimplência com cheques à vista e pré-datados que já supera os 2%, contra a média histórica de 1%.

¿ Minha percepção é que há um esgotamento da capacidade de endividamento, seja porque as pessoas já estão muito endividados ou porque ficaram mais cautelosas ¿ afirma o economista da USP Nelson Barrizelli.

Líder do segmento no país, o Pão de Açúcar acumula três meses consecutivos de queda nas vendas. O grupo afirma ter verificado ¿uma elevada cautela por parte dos consumidores e uma menor renda disponível para a compra de alimentos, diante dos compromissos assumidos na compra de bens duráveis (compras parceladas e empréstimos consignados)¿. Na área de materiais de construção, o movimento se repete. Dados da Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção (Abramat) indicam queda real nas vendas de 11,23% desde o início do ano.

Os números da Fundação Instituto de Administração (FIA), de São Paulo, indicam retração de 3,5% nas vendas do varejo de produtos não-alimentícios de janeiro a setembro. Nem mesmo o fôlego do setor de eletroeletrônicos conseguiu impedir essa queda.

Até mesmo a exuberante expansão do crédito este ano já começa a esfriar. Pelos cálculos do Bradesco, o estoque de financiamento a pessoas físicas, já descontados inflação e efeitos sazonais, cresceu 2,3% em setembro, contra 3,1% em agosto. A modalidade de empréstimo que mais cresceu nos últimos 12 meses foi a com desconto em folha: alta de 106,4%. Em seguida vem a aquisição de bens, típica do varejo, com 53,4%.

Pesquisas recentes mostram que, em cada dez pessoas, quatro utilizam o crédito consignado, com desconto em folha. Destes, 20% já tinham outras dívidas. O problema é que a expansão do crédito, este ano, veio acompanhada de uma alta nos juros básicos da economia. A Taxa Selic, que era de 18,25% ao ano em janeiro, subiu para 19,75% em maio e só caiu a partir de setembro, até os 19% atuais.

Novos inadimplentes causam surpresa

O vice-presidente da Telecheque explica que, tão logo os juros começaram a subir, os lojistas ampliaram os prazos de pagamento para fazer as prestações caberem no bolso do consumidor. Dados da Anefac (associação que reúne executivos de finanças) mostram que, há um ano, os financiamentos tinham prazo médio entre 12 e 24 meses. Hoje, chegam a três anos. Mas, nos últimos meses, nem as prestações a perder de vista têm conseguido atrair o consumidor e o comércio passou a oferecer cada vez mais as vendas sem entrada.

Segundo Praxedes Neto, da Telecheque, também chamou a atenção da empresa o aumento no número de ¿estreantes na inadimplência¿. Há casos de pessoas que já estão no cadastro da Telecheque há anos e que, pela primeira vez, tiveram seus cheques devolvidos.

Semana passada, o oficial da Marinha Roberto Pimentel, que já tem três linhas de crédito, pretendia levantar mais recursos no Centro do Rio:

¿ Queria ganhar mais fôlego nos próximos dois meses. Hoje não sobra nada do salário. Só daqui a dois anos vou me ver livre das dívidas. Mas, com o aumento de 13% dos militares, a situação vai melhorar um pouco.

CRÉDITO PODE IR A 50% DO PIB NOS PRÓXIMOS ANOS, na página 34