Título: ALIANÇA DE HORIZONTE INCERTO NA CASA BRANCA
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 30/10/2005, O Mundo, p. 40

Principal assessor de Bush, Karl Rove passa de arquiteto da reeleição a protagonista de crise

Okern 0.38pt Esta semana marca o primeiro aniversário da triunfal reeleição de Bush. Mas não há o que comemorar. Nem com quem. Karl Rove, o homem que há 20 anos lhe serve de estrela-guia na política e planejou cada etapa de sua ascensão ao poder, tornou-se um dilema maior que José Dirceu para Lula. Embora ainda não indiciado pelo promotor especial Patrick J. Fitzgerald no caso do vazamento da identidade de uma agente da CIA ¿ considerado crime federal nos EUA ¿ Rove está ferido. Sua onipresença ao lado do pupilo/presidente, como vice-chefe de gabinete da Casa Branca, tornou-se duvidosa. E não há mais espaço para erros na combalida administração de George W. Bush.

Nascido pobre e republicano

O tamanho de Rove na biografia política do presidente americano é duplamente curioso quando se levam em conta suas origens. Neto de trabalhador braçal do Meio Oeste, nasceu na América pobre ¿ sua mãe chegou a morar num barraco de papelão. Sempre que lhe perguntam quando começou a obsessão em se tornar um operador da política e do poder, responde com a data do próprio nascimento: 25 de dezembro de 1950.

Também acredita já ter nascido republicano. Enquanto os jovens de sua geração protestavam contra a Guerra do Vietnã e experimentavam a vida nos tons dos anos 60, o jovem Karl se interessava por Richard Nixon e pela Guerra Fria. ¿Eu era um nerd. Nunca aprendi a tocar violão ou cantar as garotas da época¿, explica.

Autodidata ferrenho e leitor compulsivo de compêndios de História americana, acabou arrumando emprego na Partido Republicano ¿ seção Jovens. Tinha 22 anos quando desembarcou no Texas. Um dia lhe pediram para levar a chave de um carro ao filho de um líder partidário local que estudava em Harvard. Rove lembra com precisão o que viu: ¿O carro era um AMC Gremlin cor pastel, com bancos de couro azul¿. As chaves eram para George W. Bush, ainda em sua fase playboy. ¿Ele tinha uma imensa dose de carisma: andar descontraído, botas de caubói e jaqueta de aviador, sorriso cativante. Carisma, em suma¿. Em suma, também, tudo o que o rechonchudo republicano do Meio-Oeste não tinha.

Quinze anos depois, foi George W. quem lhe entregou as chaves de sua primeira campanha eleitoral ¿ queria ser governador do Texas. A esta altura Karl Rove já tinha virado a política texana de cabeça para baixo, comandando a eleição e posterior reeleição de um republicano, Bill Clemens, em terras que há 100 anos votavam democrata. Como? Antecipando a emergência de uma direita cristã ainda silenciosa e transformando em ciência exata o ainda tímido recurso de falar com o eleitor por mala-direta. Obsessivo, metódico e detalhista, montou uma máquina de arrecadar fundos 24 horas ao dia, permitindo-lhe dirigir campanhas milionárias. Vale lembrar que o Texas, se fosse país independente, seria a 11ª economia mundial.

Foi com essas credenciais, e a de operador político que joga sujo, que Karl Rove arregaçou as mangas pelo filho mais velho do ex-presidente George H. Bush, que acabara de ser derrotado por Bill Clinton. As credenciais de Bush junior, além do sobrenome e o que dele deriva, eram nulas na arena política ¿ dono do Texas Rangers, o time de beisebol mais popular do estado, o jovem Bush passava os dias treinando obsessivamente para maratonas. Karl Rove analisou seu desempenho nas corridas e gostou do que viu. Era energia e disciplina em abundância para quem tinha fama de desocupado. Decidiu fazer de George W. Bush seu troféu definitivo. Deu certo.

Um `garoto genial¿ à frente da campanha

¿Para Karl, o homem do plano¿, escreveu o recém-eleito governador Bush na foto da primeira vitória, em 1992. ¿E aqui está ele, o Arquiteto¿, anunciou o presidente reeleito em novembro de 2004, na festa de arromba televisionada para o mundo inteiro. Foi ¿Boy Genius¿ ¿ apelido de Rove e título do melhor livro sobre criador e criatura, de autoria de Lou Dubose ¿ quem percebeu o potencial de Laura Bush como cabo eleitoral do marido. Foi Rove quem driblou a dificuldade de Bush em dominar detalhes mantendo-o longe da imprensa e em comunicação direta com o público. Nunca permitiu que mais de quatro temas fizessem parte da agenda do candidato.

Vale registrar que o principal arquiteto da cruzada religiosa que elegeu Bush para purificar a América jamais freqüentou uma igreja. Ninguém rezava na família Rove. ¿Jamais encontrei a fé¿, explica apenas. Mérito seu e do cristão renascido Bush ¿ cujo diálogo íntimo e profundo com Deus tornou-se parte de sua Presidência ¿ que essa abissal diferença entre ambos não os tenha impedido de chegar juntos à Casa Branca.

É a partir da guerra total ao terror, desencadeada por Bush em resposta ao 11 de Setembro, que a figura de Karl Rove começa a se eclipsar deliberadamente do noticiário. ¿Não trabalho com inteligência¿, passou a repetir quando indagado sobre o tema mais nevrálgico do governo.

É possível que o arguto Rove tenha conseguido se manter à distância da política de guerra que já causou 2 mil mortes entre soldados americanos no Iraque. Mas os 22 meses de investigação sigilosa a cargo do promotor especial Patrick Fitzgerald indicam que Rove pode ter cometido um escorregão fatal para o cargo que ocupa. Enquanto foi chefe de campanha, sempre jogou duro e quem o subestimou arrependeu-se. Costumava igualar política à guerra e considerava todo adversário um inimigo a ser abatido. Para tanto, recorria a expedientes da era Nixon, só que sem deixar impressões digitais.

O rol de golpes baixos incluiu desde uma escuta telefônica em seu próprio gabinete, atribuída ao campo adversário, até a criação de sites repletos de rumores estapafúrdios sobre outros candidatos. No caso do senador republicano John McCain, por exemplo, que disputava com Bush a candidatura republicana à Presidência, veiculou-se que ele tivera um filho com uma norte-vietnamita e por isso recebera tratamento privilegiado em cinco anos de prisão em Hanói.

No caso Plame, porém, a investigação adquire outro patamar e já resultou no indiciamento e renúncia de I. Lewis Libby, chefe de gabinete do vice-presidente Dick Cheney, por perjúrio, obstrução da justiça e falso testemunho. Nesta primeira rodada Karl Rove ficou de fora. Mas Bush sabe que já não pode mais contar nem com seu ¿Boy Genius¿ ¿ também ele encolheu.