Título: A DOENÇA DO ANTIPOPULISMO
Autor: ANTHONY GAROTINHO
Fonte: O Globo, 01/11/2005, Opinião, p. 7

Os rótulos quase sempre induzem a equívocos, distorcem ou simplificam. São carimbos resultantes do desejo de autopromoção dos autores ou da imprecação dos adversários. Se pejorativos, os rótulos aniquilam idéias brilhantes e fulminam reputações inatacáveis. Distorcem, enfim, o significado original, tomando o reto pelo sinuoso e o sério pelo irresponsável. E assim, a partir de fragmentos isolados da realidade, constrói-se a versão dominante do fato ¿ algo totalmente descolado das características originais; a rigor, pura e simples contrafação.

Grosso modo, esse é o sinuoso percurso da expressão populismo. Nascido nos anos 30 para designar os regimes que romperam com as oligarquias agrárias e incorporaram expressiva parcela da população ao processo político, o populismo teve seu significado pouco a pouco distorcido, com uma completa inversão de signos: de sistema político legitimamente voltado para os interesses populares a reles mecanismo maquiavélico de manipulação das massas.

Hoje, essa simplificação pejorativa é senso comum. Populismo virou clichê, banalizado para ofender e interditar. Extrapolou a teoria acadêmica para incorporar-se ao dicionário da mídia, agora como palavrão. Só a reconstituição histórica de origens e motivações permite compreender sua importância.

A Revolução de 30 é ponto de partida. Transformou a face do Brasil, pôs fim ao modelo econômico oligarca-exportador e deflagrou acelerado processo de urbanização. Em meio às transformações ¿ fundas e viscerais ¿ surgem nas capitais enormes contingentes de despossuídos, homens que haviam perdido a identidade com o campo, mas não chegaram a fincar raízes na cidade. A partir desse agrupamento de brasileiros, unidos pelo infortúnio, firmaram-se os fundamentos do conceito do que seria uma sociedade de massa. Tem-se ali o povo em sua expressão mais legítima e genuína.

O surgimento desse novo extrato da sociedade brasileira rompeu o precário equilíbrio social existente. Afloraram demandas, num ainda inédito e primário movimento de fricção de classes. O presidente Getúlio Vargas teve sensibilidade para criar instrumentos que permitiriam o início de um longo e ainda inacabado processo de inclusão social. Criou a legislação trabalhista, revalorizou a moeda nacional, despertou na população os valores nacionalistas, democratizou o voto, estimulando as classes populares a participar do processo político. A isso deu-se o nome de populismo, como definição de inserção social das massas urbanas.

A reação logo viria. Das elites conservadoras, em decorrência da ameaça contida nas transformações sociais. Dos comunistas, que temiam perder a hegemonia de um discurso que nunca puderam converter em prática de poder. A oposição a Vargas os uniu na tarefa de demolir e distorcer o sentido desse conjunto de idéias e práticas a que passaram a chamar de populismo, agora não mais como conceito sociológico, mas como acusação.

Com as diferenças de época, essa aliança esdrúxula repete-se nos dias de hoje, quando PT e PSDB encenam rusgas de fachada, mas comungam do mesmo ideário nas questões de fundo. Petistas e tucanos também gostariam de liderar as transformações efetivas do país. Não o fazem por tibieza, ambigüidade congênita e ausência de compromisso com os interesses republicanos. PT e PSDB são faces postiças de um mesmo conceito: o neoliberalismo, que faz do populismo seu inimigo conceitual.

Hoje, tentam me pespegar esse rótulo na vã ilusão de que assim depreciam meus valores, eliminam meus sonhos e reduzem meus propósitos. Enganam-se, pois a cada provocação reajo com mais vigor, a cada insulto respondo com mais determinação. Desejo, sim, um Brasil socialmente justo, com mais emprego, menos pobreza e voltado para os interesses dos setores produtivos da sociedade. E não me importo de ser tachado de populista cada vez que explicito uma dessas propostas.

Acusam-me de populista por implantar projetos dirigidos às camadas populares. Rotulam-me dessa forma por conta de minha determinação de manter uma rede de proteção social que hoje atende a mais de 1,8 milhão de pessoas ¿ brasileiros postos à margem da dignidade social por conta exatamente da política econômica excludente criada pelo PSDB e aperfeiçoada pelo PT. São ambíguos nossos detratores. Promovem a mais deletéria concentração de renda do mundo ¿ só perdemos para Serra Leoa ¿ e ainda têm a desfaçatez de condenar programas sociais, taxando-os de populistas.

Eu e meu partido temos um projeto para o país, cuja validade e oportunidade serão julgadas nas urnas. Não pretendemos nos intimidar diante de um rótulo nascido da metamorfose elitista que travestiu de ofensa uma expressão positiva no coração do povo.

Longe dos malabarismos acadêmicos e do saudosismo oligarca, estou com o povo e com a sua memória do populismo de Vargas, do trabalhismo de tantos líderes populares importantes e das reformas de base tão prometidas quanto adiadas em nome daquilo a que as elites costumam chamar de modernidade.

Disparem contra mim o desaforo que farei dele instrumento de transformação social.

ANTHONY GAROTINHO é secretário de governo do Estado do Rio.