Título: DESCULPEM, MAS É BURRICE MESMO
Autor: JORGE ANTONIO BARROS
Fonte: O Globo, 04/11/2005, Opinião, p. 7

É impressionante a capacidade da polícia de errar o alvo mesmo quando tem tudo para acertar. O episódio do cerco e da morte do traficante Bem-Te-Vi, chefe do tráfico da Favela da Rocinha, a maior da América Latina, revela não apenas a falta de unidade na ação das polícias civil e militar, mas também o total despreparo dessas instituições no relacionamento com a imprensa. Só isso explica a liberação para os jornais da tática empregada para cercar o bandido numa operação chamada simbolicamente de Tróia.

Os chefes da operação, bem-sucedida em certo aspecto, revelaram aos jornalistas - sem pedir que a informação fosse mantida sob sigilo - que cerca de 15 policiais civis se infiltraram na favela, alugando um apartamento durante 15 dias. O chefe da Polícia Civil, delegado Álvaro Lins, gabou-se de ter realizado uma ação de inteligência policial com o objetivo de pegar Bem-Te-Vi, vivo ou morto. Obviamente que os agentes envolvidos na operação tinham consciência de que provavelmente Bem-Te-Vi reagiria e seria morto, já que se tornara um alvo fácil dos policiais infiltrados.

Toda ação de inteligência policial pressupõe não apenas êxito no cerco, mas também na captura do criminoso, assim como sua guarda até que seja condenado e punido com a perda da liberdade e dos bens acumulados no crime. Não se trata de maneira alguma de preservar a vida do bandido em troca da vida de policiais corajosos. Entre um policial honesto e trabalhador e um bandido, obviamente que a sociedade prefere que o primeiro continue vivo.

Mas não se pode ignorar que Bem-Te-Vi vivo e na gaiola poderia ser muito mais útil em qualquer investigação de crime organizado e, por exemplo, sobre policiais corruptos que lhe forneciam armas e até drogas. Continuarão a fazê-lo para os sucessores, confirmando que repressão ao tráfico na ponta, nas favelas, é mero enxugamento de gelo, como alguns policiais já admitem.

O pesquisador G.T. Marx faz, em seu livro "Undercover, Police Surveillance in America" (numa tradução livre, 'Operações secretas da Polícia na América'), um inventário minucioso das práticas policiais disfarçadas. Além da escuta telefônica com autorização judicial, que também foi usada no cerco a Bem-Te-Vi, há a campan (vigilância do alvo), a cilada, o encorajamento à delação e a infiltração dentro da própria organização criminosa, a mais arriscada para os policiais. No caso do cerco a Bem-Te-Vi, a polícia revelou sua tática de infiltração no território de livre circulação do alvo. Por mais criativa que seja a polícia fluminense, com o vazamento da informação, queimou uma tática importante para o levantamento de informações em locais hostis à presença da polícia.

Pela própria natureza de sua atividade (a quebra de sigilo é a meta principal do bom jornalismo investigativo), jornalistas e jornais não podem ser cobrados pelo vazamento de informações secretas. Com certeza, cada veículo tem suas regras e responsabilidade suficiente para julgar caso a caso. Mas entrevistas coletivas autorizadas não costumam ser deixadas na gaveta. Publicam-se. Cabe a quem está divulgando os fatos tomar os maiores cuidados, o que não aconteceu desta vez. O pior é que muitas vezes essa transparência toda não dura um minuto quando se trata de expor os maus policiais que dominam as corporações ou de exibir estatísticas confiáveis, mas que revelam o fracasso de políticas de segurança do governo atual.

Obviamente que o chefe de Polícia e o delegado Luiz Antônio Ferreira, que chefiou diretamente a operação Tróia, são policiais experientes. Só precisam superar os obstáculos na relação entre polícia e imprensa - muitas vezes atribulada por questões de princípios - e, como a maioria dos policiais, aprender a lidar melhor com os jornalistas. Esse despreparo na relação com a imprensa também é fruto de períodos de arbítrio e exceção ao qual costuma ser submetido o aparelho policial.

Inteligência policial pressupõe um conjunto de táticas que ajudem não apenas a desvendar um crime, mas a golpear a organização criminosa e abrir a "caixa-preta" de suas operações e de seu modo de atuar na sociedade. Qualquer vazamento de informações que permita ao criminoso entender com clareza como age a polícia não tem nada de inteligente. Desculpem, mas é burrice mesmo.

JORGE ANTONIO BARROS é jornalista.