Título: TIROS AGRAVAM VIOLÊNCIA NA PERIFERIA DE PARIS
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 04/11/2005, O Mundo, p. 28

Distúrbios se espalham por 20 bairros e 177 carros são incendiados numa só noite. Rivais se unem para conter revolta

PARIS. A revolta nos subúrbios pobres de Paris assumiu ontem proporções de guerrilha urbana. Pela primeira vez desde o início dos confrontos, há uma semana, jovens revoltados atiraram em policiais e bombeiros, depois de deixarem um rastro de destruição em vários bairros: incendiaram carros, ônibus, e jogaram pedras em trens. Só na noite de anteontem, 177 carros foram queimados.

A situação ontem parecia incontrolável, apesar de o governo ter mobilizado batalhões nas ruas. No subúrbio de Aulnay-sous-Bois, gangues de jovens incendiaram uma revendedora de carros, destruíram pelo menos 12 carros, um supermercado e um ginásio. O tráfego chegou a ser interrompido numa linha de trem entre Paris e o Aeroporto Charles de Gaulle, depois de grupos de jovens atacarem dois trens atirando pedras.

Em três incidentes separados, tiros foram disparados contra policiais e bombeiros. Apesar disso, ninguém ficou ferido.

Desequilíbrios sociais na origem da revolta

Em bares de bairros chiques de Paris, a crise era o assunto, e muitos parisienses comentavam que parecia o início de um novo "maio de 1968". Só que, desta vez, a revolta não é de estudantes burgueses: é de uma massa de imigrantes ou franceses de origem estrangeira que se sentem cidadãos de segunda classe, discriminados na França republicana que se orgulha de ser fundada sob o princípio da igualdade, mas que, segundo eles, não pratica o que prega. Os comentários davam idéia do fosso entre essas duas Franças, a pobre e a rica, a culta e a inculta:

- Alguns destes jovens mal sabem falar. Eles se expressam só com 56 palavras. Já imaginou como é que alguém pode se expressar com 56 palavras? - perguntava Arthur Aballain, de Saint-Germain des Prãs, um dos bairros mais caros de Paris.

Os incidentes, que há sete dias estavam confinados a um bairro classificado pelo governo como "problemático" - Clichy-sous-Bois, a 15 quilômetros de Paris - já se alastraram por 20 bairros. A violência foi desencadeada na semana passada depois que dois adolescentes de origem africana, Traoe Bouna, de 15 anos, da Mauritânia, e Zyed Benna, de 17, da Tunísia, achando que estavam sendo perseguidos pela polícia, refugiaram-se numa central elétrica e morreram eletrocutados.

As declarações desastradas do segundo homem mais poderoso do governo, o ministro do Interior, Nicolas Sarkozy, ajudaram a piorar a situação. Antes mesmo do fim da investigação, o ministro partiu em defesa da polícia, dizendo que ela perseguia ladrões, quando não era o caso. Os adolescentes jogavam futebol quando policiais chegaram para fazer controle dos documentos. Não está claro por que vários jovens correram. Mas moradores de Clichy-sous-Bois dizem que freqüentemente a polícia usa métodos violentos no bairro, gratuitamente.

A revolta da periferia não apenas virou o mais duro teste para Sarkozy - que precisa mostrar que pode controlar a situação para assegurar suas pretensões à Presidência da França - como abriu uma guerra dentro do governo. Para muitos, é o modelo francês de integração de sua grande comunidade imigrantes - sobretudo a população muçulmana, estimada em cinco milhões - que está em jogo.

Mil policiais são destacados para a região

Inicialmente, o presidente Jacques Chirac e seu primeiro-ministro Dominique de Villepin - rivais políticos de Sarkozy - deixaram a crise nas mãos do ministro do Interior. Mas acabaram sendo criticados por omissão. Por sua vez, o ministro da Igualdade, Azouz Begag, francês de uma família de imigrantes, criticou publicamente Sarkozy, dizendo que a periferia não precisava de mais policiais, mas sim de uma política para acabar com a discriminação.

Mas ontem membros do governo tentaram deixar as rivalidades de lado para adotar uma posição conjunta contra os distúrbios. Villepin e Sarkozy se uniram no Senado para anunciar que a restauração da ordem era a "prioridade absoluta". Villepin atribuiu os distúrbios a gangues.

- Eu me recuso a aceitar que gangues organizadas estejam passando por cima da lei em alguns bairros. Eu me recuso a aceitar que redes criminosas e traficantes promovam a desordem - disse Villepin. - A lei e a ordem terão a última palavra.

Sarkozy procurou reforçar a posição única do governo:

- Há apenas uma linha política, determinada pelo primeiro-ministro.

Villepin convocou ontem reuniões de emergência com vários de seus ministros. E cerca de mil policiais foram distribuídos pela região dos distúrbios, na tentativa de evitar uma outra noite de violência.

Legenda da foto: UM BOMBEIRO tenta apagar o incêndio numa escola em Le Blanc-Mesnil