Título: Risco real
Autor: Míriam Leitao
Fonte: O Globo, 06/11/2005, Economia, p. 34

No mês passado o Banco Central comprou mais de US$3 bilhões para aumentar as reservas cambiais. Fala-se que o Tesouro fará nova emissão. Em lançamentos recentes, aumentou a proteção cambial para o ano que vem. Dificilmente as turbulências de 2006 serão piores do que as de 2002, mas não será uma eleição tranqüila. O risco real do ano que vem não é econômico, é político.

O Tesouro acha que hoje uma das coisas mais fáceis é se financiar no mercado internacional. Mesmo assim, o secretário Joaquim Levy inicia esta semana um road show que o levará a três continentes. Recentemente ele fez visitas às agências de risco para dar elementos ao movimento, já iniciado, de melhoria da classificação de risco-país. O pagamento antecipado ao FMI e ao Clube de Paris faz parte do processo de fortalecimento do país para o ano que vem.

Houve um momento, na última eleição presidencial, em que o Banco Central não conseguia vender título algum para além de dezembro de 2002, o dólar disparou, as empresas não conseguiam rolar seus empréstimos no exterior. Que risco há de que isso se repita no ano que vem?

É difícil imaginar que haverá a mesma tsunami. O Brasil está com 2% do PIB de superávit em transações correntes, no terceiro ano consecutivo de resultado positivo nessa conta, a moeda subiu 16% no ano, o superávit primário do ano que vem está mantido pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) em 4,25%. Será o oitavo ano de superávit primário. A balança comercial deve ser um pouco menor, mas o país estará no sétimo ano seguido de resultado positivo no comércio. A inflação carregará menos pressão de 2005, pela queda do IGP-M. Mesmo que os reajustes de tarifas tenham razões que a própria inflação desconhece ¿ como se viu agora no reajuste autorizado para a Light ¿ haverá menos pressão de preços administrados.

Em tese, o que é sólido pode se desmanchar no ar rarefeito que deve tomar conta do Brasil nesta disputa eleitoral. Mas não completamente. A economia brasileira está mais forte e a economia mundial continua bem. O risco desta vez não é o mesmo da última eleição. Mas há riscos. O ano que vem será pior do que o de 2005, que poderia ter sido bem melhor do que foi. Haverá momentos de tensão, o dólar ficará mais pressionado e haverá dias de incerteza.

Os riscos maiores são de duas naturezas. Primeiro, o de que o país se acostume com absurdos e passe a achá-los naturais. Se isso acontecer o país vai consolidar a impressão de que a política é ¿sistematicamente¿ assim. Segundo risco: o de a disputa eleitoral ser uma inútil troca de balaços entre os partidos, sem qualquer proposta relevante para a superação das dificuldades reais do país. Um debate inútil que enfraquecerá a todos.

O primeiro risco vai se materializar se os crimes ficarem sem punição. Semanalmente aparecem denúncias graves e fortes indícios de irregularidades, mas que são superados por outra linha de investigação mais espetacular, que depois será abandonada para dar lugar a outra novidade.

Na semana passada ficou claro, na acareação entre os doadores e os receptores do valerioduto, que uma parte do caixa dois financiou gastos da campanha presidencial do candidato vitorioso. Em outro momento foram divulgados trechos de conversas telefônicas entre autoridades ligadas diretamente ao presidente, como o chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, com suspeitos do assassinato do prefeito Celso Daniel. Mesmo que as transcrições tenham sido apresentadas fora do contexto, os telefonemas em si eram inconvenientes. Como falar com suspeito de assassinato? Teria sido tentativa de instruir testemunhas? Por tentar instruir testemunha, Maluf e o filho foram presos. A morte de Celso Daniel foi seguida pela morte de sete testemunhas. A idéia defendida inicialmente de que era crime comum é tão verossímil quanto o relatório do coronel Job Lorena sobre o Riocentro.

Esses fatos espantosos foram abandonados pelo novo fato espetacular: teria vindo dinheiro de Cuba? Noves fora o fato de que Cuba não tem onde cair morta, o assunto dominou os ânimos alguns dias até que foi substituído por um festival de supostos grampos que assolou Brasília. Num ataque de infantilidade machista, os políticos ameaçaram resolver tudo no braço. O assunto merecia mais seriedade. Foi por usar a máquina pública para espionar adversários que Richard Nixon perdeu a Presidência.

A semana teve outro fato importante: o fio que liga o dinheiro do Banco do Brasil aos repasses de Marcos Valério ao PT. O Banco do Brasil deve muitas explicações ao país, aos acionistas, aos contribuintes e à CPI. O fato é gravíssimo pelo banco ser o que é, uma empresa com controle do governo e com ações nos mercados interno e externo. Desde o início, as denúncias rondam o Banco do Brasil. Foi lá que Marcos Valério recebeu contratos sem ter participado de concorrência, como no caso do Banco Popular do Brasil. O BB precisa oferecer ao país mais do que suas notas de desmentidos.

Esta semana que começa pode trazer novas espumas, novos valentões, mais uma descoberta espetacular que vai soterrando fatos abrumadores já expostos. Nesse campeonato semanal pela pior revelação, o país vai se acostumando com a sujeira, vai perdendo o fio da meada, vai se cansando e erodindo a fé nas instituições. O risco não será em que ponto estará o risco-Brasil do ano que vem, mas em que nível estará a descrença nacional. Para blindar o país contra esse risco-Brasil real, só apurando seriamente e punindo todos os envolvidos.