Título: ONDE PARIS É MISERÁVEL
Autor: Deborah Berlinck
Fonte: O Globo, 06/11/2005, O Mundo, p. 38

Pobreza, desemprego e discriminação semeiam revolta e violência nos subúrbios da capital francesa

Okern 0.2pt< homem entra na padaria de Fatma Zora, em Clichy-sous-Bois, epicentro da revolta que há mais de uma semana incendeia os subúrbios de Paris. Anoitece. Famílias se apressam para chegar em casa, enquanto tropas de choque desembarcam. A tensão está no ar. Clichy se prepara para mais uma noite de quebra-quebra.

O homem pede quatro bisnagas, mas diz que só tem dinheiro para duas. Fatma, com o rosto coberto por um véu islâmico, vê dinheiro no bolso da camisa dele e pede uma explicação. Depois de 21 anos morando ali, esta argelina sabe onde pisa. Não tem meias palavras. O dinheiro é para pagar a conta do celular, explica o homem. Ela não perdoa:

¿ E você me diz que não tem dinheiro para comida? Pois escolha: celular ou pão.

Em Clichy-sous-Bois, a vida é assim. A bisnaga, banal na vida parisiense, pode ser um luxo. Pois neste subúrbio pobre, com 28 mil moradores, na grande maioria imigrantes africanos ou descendentes deles, e metade com menos de 25 anos, o dia-a-dia nada tem do glamour de Paris. Depois de um longo trajeto no trem, demoradas esperas em paradas de ônibus, uma outra França emerge, tão próxima, e ao mesmo tempo tão distante, da rica Paris. Em mais de um quarto das casas de Clichy, o chefe da família está desempregado. Num ponto de ônibus, quatro jovens hostilizam um rapaz. Em alguns segundos, o moço é cercado e recebe tapas e pontapés.

Em meio à minoria que semeia violência, uma massa de trabalhadores que têm empregos precários luta para sobreviver. Em Clichy, só 4,7% dos moradores têm nível superior. Muitos contam que vieram para a França sonhando com uma vida melhor. Mas dizem que o país não é mais o mesmo de 20 anos atrás. Quase 25% estão desempregados. Seus filhos se tornaram cidadãos de segunda categoria. Em Clichy não há centro de lazer para jovens, nem o conforto ou o bom nível das escolas parisienses. Mas os filhos de imigrantes querem a vida de Paris, e não a da Argélia ou a do Mali.

Batidas policiais que acabam mal

Frustrados por não terem essa vida, os jovens acabam como seus pais: infelizes com a pobreza, revoltados com uma França que prega ser o país da igualdade e da fraternidade mas que na prática não o é. Como boa parte dos moradores é muçulmana, tudo entra na equação da revolta: o passado doloroso nas ex-colônias, a sensação de serem discriminados pela religião, ou pela cor.

Pergunte ao francês Soum Traore, 28 anos ¿ professor de futebol num clube em Val d¿Oise, terceira geração de uma família que emigrou do Mali ¿ o que acontece com seus alunos:

¿ Vivemos a escravidão dos tempos modernos. Ganho 1.200 euros e pago 600 de aluguel. Tudo aumenta, menos o salário. Imagine os garotos que treino. Muitos têm um talento enorme, mas não têm meios. Chegam ao clube cheios de dificuldades. Quando você tem seis irmãos, quatro irmãs e seus pais ganham 900 euros, como é que você sai desta? ¿ pergunta.

Moradores de um conjunto habitacional relatam um dia-a-dia infernal. O simples endereço já é suficiente para não conseguir emprego. Motoristas de táxi se recusam a chegar perto. Adolescentes perambulam nas calçadas. Acusam policiais de racismo, xingam Nicolas Sarkozy, o ministro do Interior, e se revoltam com suas próprias histórias. A argelina Rachid, mãe de três filhos, lamenta:

¿ Nada temos aqui. Faltam atividades para nossas crianças, centros de lazer... E basta uma batida policial para as coisas acabarem mal. Primeiro jogam os jovens contra o muro, e só depois pedem documento. Imploro aos meus filhos para manterem a calma. A polícia semeia a violência.

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