Título: O PAPEL DA IMPRENSA
Autor: CARLOS ALBERTO DI FRANCO
Fonte: O Globo, 07/11/2005, Opinião, p. 7

Opresidente Lula anda irritado com a imprensa. Sente-se vítima de um suposto cerco dos meios de comunicação ao seu governo. Incomoda-o, e muito, o pipocar constante de denúncias envolvendo membros de sua equipe ou dirigentes do seu partido. Na versão do presidente da República e do PT, como lembrou recente editorial do jornal ¿O Estado de S. Paulo¿, a crise das denúncias de corrupção, desencadeadas há meses com um flagrante de cobrança de propina nos Correios, resume-se exclusivamente ao seguinte ¿erro¿: sem dar conta a ninguém de seus atos, o então tesoureiro do partido, Delúbio Soares, em parceria com o publicitário Marcos Valério, tomou empréstimos milionários para abastecer o caixa 2 de campanhas eleitorais de petistas e aliados.

Reconhecida a responsabilidade de Delúbio, o partido o expulsa por ¿gestão temerária¿ e está tudo resolvido. Surpreende-se o presidente com a ¿irresponsabilidade¿ de jornais que não se satisfazem com a explicação e, ¿levianamente¿, continuam a encostar o governo na parede. Ora, caro leitor, o ¿erro¿ do ex-tesoureiro do PT e amigo do presidente derrubou o poderoso ex-ministro José Dirceu, implodiu diretorias de estatais, dinamitou a cúpula do partido do presidente e reduziu a pó a imagem do PT. Quem não deve não teme.

A debandada dos cargos e a submersão dos protagonistas dos escândalos parecem indicar que as coisas não são tão simples.

Na verdade, as investigações começam a se aproximar do gabinete presidencial. Uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), por exemplo, revelou um notável descalabro na Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom), na gestão do ex-ministro Luiz Gushiken, origem de um prejuízo de R$15,6 milhões para os cofres públicos em produtos não entregues e serviços superfaturados. Curiosamente, um dos principais beneficiários das irregularidades verificadas no exame de dez produtos e serviços contratados pela Secom foi a agência de publicidade de Duda Mendonça. A notícia do resultado da auditoria irritou o presidente. Trata-se, no entanto, de um fato. E, goste ou não o presidente da República, nas democracias verdadeiras as notícias não são censuradas.

É curioso, caro leitor, como os governos com vocação autoritária convivem mal com a liberdade de imprensa e de expressão. Hugo Chávez amordaçou a imprensa. É um fato. Aqui, as tentativas de engessar o jornalismo nos moldes do finado Conselho Federal de Jornalismo foram intensas. Não deram certo. Felizmente. O partido do presidente, quando na oposição, usava e abusava de seu poderoso estilingue contra as vidraças do Palácio do Planalto. Lei da Mordaça, nem pensar. E as CPIs, que brotavam como cogumelos, eram defendidas como instrumento indispensável no combate à corrupção. Agora, instalado no poder, e decidido a não abandonar o trono, a coisa mudou. Abertura de CPI virou conspiração para derrubar o governo. E a Lei da Mordaça virou ¿instrumento legítimo para controlar a irresponsabilidade da mídia e dos promotores¿. Às favas com a transparência. É o governo de resultados.

Os jornalistas, segundo o presidente, estariam extrapolando o seu papel e assumindo funções reservadas à polícia e ao Poder Judiciário. O jornalismo, como qualquer atividade humana, está sujeito a erros. Um balanço sereno, no entanto, indica um saldo favorável ao trabalho da reportagem. Na verdade, a imprensa, mais uma vez, está se transformando numa instância, talvez a única, de uma sociedade abandonada e agredida por muitas de suas autoridades. A repercussão do mergulho no pântano da corrupção em que se transformou certo setor da vida pública brasileira está dando alento à cidadania encurralada.

A sociedade, ao contrário do que pensam os céticos, pode emergir desse lodaçal num patamar civilizado. Graças ao papel da imprensa e à legítima pressão da opinião pública, seja qual for o desfecho das investigações em andamento, depois delas o Brasil não será o mesmo. E o efeito cascata, assim espero, será irreversível.

CARLOS ALBERTO DI FRANCO é diretor do Master em Jornalismo.