Título: LULA POR LULA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 08/11/2005, O País, p. 4

O presidente Lula tem um senso moral todo próprio, e vai despejando seus conceitos ao léu, variando de acordo com seus interesses imediatos sem levar em conta os compromissos que tem como primeiro mandatário do país. Já se vangloriou de ter chegado onde chegou sem ter estudado, o que é um péssimo exemplo para os jovens brasileiros.

Não bastasse ter chamado recentemente para seu palanque o líder dos sem-terra do Pontal do Paranapanema José Rainha, que estava sendo acusado de vários delitos pela Justiça, ontem resolveu consolar sua mulher Diolinda, pois Rainha, condenado a dez anos de cadeia pelo incêndio de uma fazenda invadida, está foragido da Justiça.

O que poderia ser um gesto humanitário de solidariedade, partindo do presidente da República e tratando-se de um condenado foragido, soa como um desprestígio à Justiça e transforma-se, mesmo que Lula não tenha tido essa intenção, em um incentivo à criminalidade. Ainda mais que, pelos relatos da conversa, Lula teria dito a Diolinda que também já passou por esse tipo de perseguição. Lula não apenas deu uma conotação política à condenação de Rainha, como se esqueceu de que vivemos em uma democracia, ao contrário da ditadura em que ele foi perseguido político.

Lula já justificou o caixa dois do PT nas eleições de 2002, dizendo que era uma prática corriqueira na política brasileira. Mais uma vez não se deu conta ¿ ou foi dissimulado ¿ de que estava tratando com complacência uma prática que seu ministro da Justiça classificou de ¿coisa de bandido¿. E que é prevista no Código Penal com pena de até cinco anos de cadeia. Meses depois, no programa ¿Roda Viva¿ de ontem, finalmente classificou o caixa dois de ¿deplorável¿.

Mas continua colocando-se acima de qualquer suspeita, e sem nenhuma responsabilidade com relação às coisas ¿deploráveis¿ que seu partido cometeu durante a sua própria campanha presidencial, quando usou o caixa dois para diversos pagamentos, já admitidos oficialmente por vários depoimentos, desde o marqueteiro Duda Mendonça ao ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes.

Apesar de continuar afirmando que não sabia de nada, diz que tem certeza de que nunca houve pagamento do mensalão. Mas se diz espantado com o fato de Delúbio Soares ter ¿terceirizado¿ as finanças do PT, numa definição peculiar do esquema de corrupção que seu partido montou na Câmara. Assim como Delúbio cunhou, certamente por orientação de advogados, a expressão ¿dinheiro não contabilizado¿ para se referir ao valerioduto que financiou a corrupção do PT.

Também ontem Lula voltou a insistir em que não está ainda decidido a se candidatar à reeleição, afirmação que não corresponde aos fatos. O presidente Lula já teve diversas reuniões com dirigentes do PT e seus principais articuladores políticos para montar as alianças para a eleição do próximo ano. Gilberto Carvalho, seu chefe de gabinete, ontem mesmo deu entrevista à ¿Folha de S.Paulo¿ falando da campanha da reeleição como fato consumado, embora admitindo que será ¿dolorosa¿.

Mesmo que, no seu íntimo, Lula continue mesmo contrário à reeleição, não poderia nunca abrir mão de disputar um segundo mandato, no mínimo para não parecer uma confissão de culpa. Além do mais, com o PT desmoralizado diante do eleitorado, se seu principal líder político deixasse de se candidatar, o partido correria o risco de minguar a tal ponto nas próximas eleições que perderia completamente sua força política.

Houve um momento durante essa crise política em que a possibilidade de Lula não se candidatar à reeleição tornou-se verdadeira, e seu afastamento do PT quase uma realidade. Mas, apesar de atacado por todos os lados e em desvantagem diante dos fatos apurados pelas CPIs, o presidente Lula mantém uma invejável capacidade de equilibrar-se na corda bamba e, de praticamente descartado da disputa pela oposição, voltou a ser um candidato forte na corrida presidencial.

O senador Cristovam Buarque, que rompeu com o PT e bandeou-se para o PDT, atribui à ambigüidade de Lula sua capacidade de sobrevivência política. Seria um candidato ideal para o mundo financeiro, pois ao mesmo tempo em que dá seqüência à política econômica dos tucanos, consegue anestesiar os excluídos com programas assistencialistas como o Bolsa Família. Essa duplicidade está exemplificada no noticiário de hoje: de um lado, o presidente Lula, em seu programa de rádio, garantiu que os pobres são o centro de atenção de seu governo. Ao mesmo tempo, o Bradesco anunciou que seu lucro dobrou este ano.

Lula segue impávido sua trajetória, e teve uma vitória política importante ontem quando o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil rejeitou a proposta de pedir o seu impeachment. A proposta da conselheira Elenice Carille, do Mato Grosso do Sul, foi provocada pela recente denúncia da CPI dos Correios de que dinheiro do Banco do Brasil financiou pelo menos parte dos recursos usados pelo lobista Marcos Valério em favor do PT. A conselheira classificou de ¿grave¿ a insistência do presidente Lula em negar ¿evidentes práticas atuais (mensalão, valerioduto) ou os demais esquemas de propinas¿.

A maioria do Conselho da OAB, porém, considerou que ainda não está caracterizado ¿o momento adequado para ingressar com processo de impedimento¿. Uma comissão da OAB vai acompanhar os trabalhos das CPIs e discutir o assunto com outras representações da sociedade civil. O presidente da OAB, Roberto Busato, que no início da crise política foi o primeiro a falar em impeachment de Lula e por isso foi seriamente criticado pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, teve que admitir que ¿seria uma aventura¿ entrar com um pedido de impeachment sem consenso nem clamor popular.