Título: UM ROUBO SEM TAMANHO
Autor: Alessandro Soler e Carla Rocha
Fonte: O Globo, 08/11/2005, Rio, p. 13

Pelo menos 900 fotos ¿ e não 150 ¿ foram roubadas da Biblioteca Nacional

Éem maior do que o imaginado o estrago no patrimônio da Biblioteca Nacional, que teve fotografias raras do século XIX furtadas durante a greve dos servidores no primeiro semestre deste ano. Desapareceram do acervo pelo menos 900 imagens, em vez de 150, como divulgado em julho. O Ministério da Cultura disse ter recebido da diretoria da fundação a informação de que ¿quase mil fotos¿ sumiram. E o número pode aumentar ainda mais. Segundo a administração interina da biblioteca, inventários parciais continuam a ser elaborados.

Um sem-número de obras do brasileiro Marc Ferrez foi levado. Fotógrafo oficial da Corte, ele documentou ainda importantes momentos da história do país, como a Proclamação da República e as reformas urbanísticas de Pereira Passos, no Rio. Do acervo da Biblioteca Nacional, constam cerca de 300 fotos avulsas dele, além de inúmeros livros e álbuns. Também desapareceram fotos dos alemães August Stahl e Guilherme Liebenau, que registraram respectivamente obras e o cotidiano de Pernambuco e Minas, e do inglês Benjamin Mulock, que retratou a construção da quinta estrada de ferro brasileira, na Bahia. Além disso, atesta Rutônio Santanna, presidente da associação dos servidores da biblioteca, foi levada a gravura ¿Cascade de Tijucca¿, de 1835, do alemão Johann Moritz Rugendas.

A Polícia Federal, que investiga o crime, diz não ter recebido o inventário completo das obras. Titular da Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da PF, Deuler Rocha criticou a direção da Biblioteca Nacional, que segundo ele não estaria colaborando adequadamente para a solução do caso.

¿ Sequer fomos oficiados sobre o número real de obras furtadas. Ainda estamos trabalhando com o antigo, de mais ou menos 150. É constrangedor que a direção da biblioteca não nos tenha dito quais foram as obras levadas. Assim fica difícil. Para complicar ainda mais, o inquérito ficou parado por dois meses na Procuradoria da República, o que atrasou nosso trabalho. Fazemos apurações, mas não pudemos enviar nada para a perícia, por exemplo ¿ queixa-se.

Ex-diretor diz que PF foi informada

Diretor da Fundação Biblioteca Nacional na época em que ocorreu o furto, Pedro Corrêa do Lago rebate as alegações de Rocha e sustenta ter enviado à PF tudo o que foi solicitado. Ele conta que se empenhou na apuração do crime tão logo tomou conhecimento dele:

¿ Gostaria que a Polícia Federal me dissesse qual informação solicitada a minha direção deixou de prestar. Não se faz um inventário desses da noite para o dia, fornecemos as informações conforme as apuramos. Eu determinei que fosse feito o inventário e o passei para o ministro da Cultura (Gilberto Gil) 15 dias antes de deixar a direção da fundação ¿ afirmou Lago, que disse não se lembrar do número exato de obras inventariado. ¿ Sei que foram alguns álbuns inteiros, dois ou três pelo menos.

O Ministério da Cultura confirma ter tomado conhecimento do número de quase mil obras furtadas, mas informa que não fará comentários sobre as investigações devido ao segredo imposto pela Justiça. Já a presidente interina da Fundação Biblioteca Nacional, Maria Isabel Almeida, que assegura não poder pela mesma razão dar o número exato de obras furtadas, diz continuar enviando inventários parciais à Polícia Federal e à Controladoria Geral da União (CGU).

¿ O processo para a contratação de um novo, e mais eficiente, sistema de segurança ainda não está concluído. Não há vencedor da licitação e, portanto, data para a instalação. Para sua implantação naturalmente precisaremos de mais verbas, que serão pedidas oportunamente. Já havia câmeras na época do roubo, mas o sistema atual será melhor ¿ ela explica, referindo-se à licitação anunciada pouco mais de uma semana depois da descoberta do furto das fotografias.

Futuro presidente da fundação ¿ a nomeação ainda não foi publicada ¿ o professor Muniz Sodré de Araújo Cabral adianta que sua gestão terá ênfase na segurança da Biblioteca Nacional. Ele revela que já tinha ouvido falar que o número de obras furtadas seria maior do que o inicialmente divulgado, mas surpreendeu-se com a extensão do crime:

¿ Sei que há muitos armários que foram abertos. Agora, todas as providências judiciárias já foram tomadas, já há auditoria investigando o furto e há investigação formal. Mas uma coisa é certa: a questão da segurança será prioritária na minha curta gestão, de menos de dois anos. Há goteiras e infiltrações no prédio. Tentaremos sanar essa situação. Sem falar na proteção do acervo. Trata-se de um patrimônio nacional importantíssimo, parte da memória do país. Espero poder retomar a segurança e a confiabilidade da biblioteca.

Ao tomar conhecimento da extensão do furto, a professora Ana Lúcia Saianes de Castro, da UNI-Rio, doutora em ciência da informação e museóloga, também se mostrou surpresa. Para ela, o roubo não foi praticado por amadores:

¿ Não é como o assaltante que entra na sua casa e leva jóias e eletrodomésticos. O grupo que roubou certamente já tinha em vista canais de escoamento. São peças com valor de mercado. Fundamental, numa hora como essa, é ter um bom inventário do acervo, digitalizado. Prova disso foi o roubo no Itamaraty, que acabou esclarecido.

Para Adolfo Nobre, presidente da Associação Brasileira de Museologia, a dilapidação do patrimônio público se deve à precária infra-estrutura dos museus do país. Ele concorda com Ana Lúcia sobre a necessidade de digitalizar os acervos:

¿ Ninguém sabe exatamente qual é o acervo brasileiro. Há uma estimativa de que seriam 400 mil peças, entre bens imóveis e integrados, mas apenas 40 mil estão catalogadas. Eu acho que o nosso acervo é muito maior. Atualmente, estamos trabalhando numa lei muito importante, a Lei Orgânica do Patrimônio Histórico, que vai criar uma série de mecanismos de controle.