Título: FAMÍLIA UNIDA POR PERNAS TORTAS
Autor: Pedro Motta Gueiros
Fonte: O Globo, 08/11/2005, Esportes, p. 32

Ulf e Martin, filho e neto de Garrincha, buscam no Rio as origens que têm no sangue

Nenhum marcador foi tão implacável com Garrincha quanto a moral de uma sociedade que condenava seus filhos fora do casamento. Nos anos 70, enquanto era perseguido por ações judiciais no Rio, soube que tinha um herdeiro também na Suécia. O comunicado do governo local dizia que seu filho estava bem assistido e não exigia nada. Vinte e dois anos depois da morte do pai, Ulf Lindberg chegou ontem ao Rio em busca apenas de seus laços afetivos. Martin, neto do craque, veio junto procurar pelas origens. Por mais que olhem em volta, curiosos por referências, Garrincha já está dentro deles.

Pernas tortas, nariz e lábios grossos, o parentesco de Ulf está na cara. Pela contagem das irmã Rosângela, que foi recebê-lo no aeroporto, ele é o terceiro filho homem e o único ainda vivo. Garrincha também é pai de dez filhas, duas já mortas. Ulf também lembra o pai na fertilidade. Tem quatro filhos como duas mulheres diferentes, e está solteiro.

¿ A cultura na Suécia é mais fria. Mas às vezes o sangue quente do Brasil se manifesta em mim.

Antes que respondesse em quais circunstâncias, o amigo Jan Hansueden se antecipou:

¿ No erotismo.

E na paixão pela bola:

¿ Sinto que sou filho dele quando começo a vibrar diante de um jogo de futebol.

Alcoolismo serve de alerta aos herdeiros

É uma tradição ancestral. Ulf talvez nem saiba sobre uma antiga tribo localizada entre Pernambuco e Alagoas. Mas carrega os genes dos índios Fulniô, onde a árvore genealógica de Garrincha tem suas raízes. Ulf encontrou as suas ao pisar o gramado em frente à estação do Pão de Açúcar. Como um nativo, tirou os sapatos, arregaçou as calças e bateu bola com o filho. Aos 16 anos, Martin já conhece bem a vida do avô pela internet. Agora, quer se aproximar dele dentro de campo.

¿ Nao penso em fazer faculdade, quero ser jogador profissional ¿ disse o atacante, que joga com a camisa 11 do HBK, da cidade de Halmstad. ¿ Meu ídolo é o Ronaldinho Gaúcho.

Ulf não se esquece de Garrincha. Desde os sete anos, ele sabe quem é seu pai. Seu nascimento foi fruto de uma excursão do Botafogo em 1959 a Suécia. Depois de um jogo contra o Umea, os jogadores foram convidados para uma recepção. Tão previsível quantos os dribles de Garrincha, sempre para o mesmo lado, eram suas invasões no campo amoroso. Mas ninguém podia detê-lo.

¿ No dia seguinte, a jovem procurou pelo Garrincha acompanhada do pai e de um policial ¿ disse Fredrik Eklund, sueco radicado no Brasil e autor de livro sobre o craque. ¿ Ela imagina que poderia estar grávida e Garrincha concordou em que colhessem seu sangue para posterior reconhecimento.

Eklund conta que a mãe, então com 19 anos, não suportou a missão de ser mãe solteira do filho de um estrangeiro num país tão louro e branco. Ulf foi para um orfanato, antes de ser criado pelos pais adotivos que tem até hoje.

A sonoridade de seu nome dá o tom do alívio que Ulf sentiu ontem. Depois de sucessivas revelações e de uma tímida correspondência com o craque em 1977, eis que o Brasil, enfim, se revela. Ontem, ele conheceu as irmãs Rosângela e Márcia. No sábado, num churrasco em Pau Grande, terra natal do pai, Ulf gostaria de ver todas as outras: Edenir, Marinete e Juraciara, Denísia, Terezinha, Cecília e Cínti e Iraciara.

¿ Perdi uma irmã num acidente de carro faz trinta anos, fui criado como filho único. O melhor dessa viagem foi ver que não estou sozinho ¿ disse ainda emocionado pelo encontro com as irmãs. ¿ A distância era muito grande. Quando a gente se abraça é que sente o quanto somos próximos.

Ulf suspirou e pôs a mão no peito ao falar do encontro.

¿ Foi lindo, emocionante. É impressionante como o nariz e o sorriso deles parecem com os de meu pai ¿ disse Rosângela, a mais velha, com 51 anos.

Ela conta que Garrincha teve 13 filhos, sendo uma adotiva, com quatro mulheres diferentes. Fidelidade, só ao álcool que abreviou sua vida. De longe, Ulf sabe que o problema é um risco para toda a família.

¿ Não adianta dizer para o Martin que não beba, porque aí é que ele vai beber. Procuro orientá-lo

Com Rosângela não há conversa.

¿ Nada de caipirinha no churrasco. A gente pode até tomar uma cervejinha, sem extrapolar ¿ disse a filha, empenhada em esquecer o gosto amargo que a bebida deixou na família. ¿ É melhor lembrar da alegria que meu pai deu ao mundo.

Com meio século de atraso, a harmonia chega a Pau Grande. Sábado, todos estarão juntos em torno das boas lembranças do pai. Com a vinda de Ulf e Martin, o destino escreve certo por pernas tortas.