Título: O mês em que o Brasil teve três presidentes
Autor: Chico Otávio
Fonte: O Globo, 11/11/2005, O País, p. 14

Há 50 anos, em 11 de novembro, tentativa de golpe contra a posse de JK pôs Forças Armadas em lados opostos

O cruzador Tamandaré, segundo maior navio da Marinha brasileira, deixava a Baía de Guanabara quando recebeu a primeira advertência, na manhã de 11 de novembro de 1955. "Proibição para saída de navios de guerra", alertava a bandeira içada da Fortaleza de Lages. A bordo, o comandante da armada, almirante Penna Botto, ignorou o aviso e seguiu em frente. Dez minutos depois, os moradores de Copacabana se assustariam com o primeiro tiro disparado pelo Forte do Leme. Outros seis tiros viriam em seguida, na tentativa de deter o navio. É difícil acreditar, 50 anos depois, numa cena tão insólita. Entre os passageiros do barco, alvo das baterias de costa, estava o presidente da República, Carlos Luz. O navio, sobrevivente do ataque japonês a Pearl Harbor, era uma fortaleza flutuante, com 15 canhões municiados e capazes de pulverizar um bairro inteiro. Para sorte da vizinhança do forte, o Tamandaré não reagiu e a cidade escapou de se tornar palco de uma batalha envolvendo, de um lado, o Exército, e do outro, a Marinha e a Aeronáutica.

A saída forçada do Tamandaré foi o auge de uma sucessão de fatos que entrou para a História como o "Movimento de 11 de novembro". Ao embarcar no navio, um grupo de políticos e militares queria impedir a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek, e de seu vice, João Goulart. A trama só não teve êxito por causa da reação do ministro da Guerra, general Henrique Lott. Para os brasileiros que estranharam quando os vizinhos argentinos, em 2001, empossaram quatro presidentes da República em menos de um mês, vale lembrar que o Brasil chegou perto, em 1955, ao ter três presidentes também em menos de um mês.

JK teve apenas 33,8% dos votos

Desde o ano anterior, marcado pelo suicídio de Getúlio Vargas, a elite brasileira transitava entre a legalidade e a conspiração. Como explica a professora Marly Silva da Motta, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC), havia apostas nos dois lados. O governo do presidente Café Filho era formado por quadros da UDN, partido com um forte sentimento antigetulista. Nas casernas em ebulição, o oficialato se dividia entre o nacionalismo, o antiamericanismo e o temor de uma revolução comunista. Os militares, diz Marly, julgavam que só eles tinham a capacidade de sanear a política dos fracos e das práticas clientelistas.

Foi nesse contexto que Juscelino venceu a eleição de 3 de outubro com uma das menores percentagens dadas a um presidente da República (33,8%). No governo, havia gente que não se conformava com a vitória de JK, prevendo a volta do getulismo. Alegava que o processo era ilegítimo, porque a vitória não ocorrera por maioria absoluta. Os militares, por sua vez, ainda discutiam o que fazer diante dos parâmetros estabelecidos pela Constituição de 1946 para as Forças Armadas.

- Uma corrente defendia a subordinação ao poder civil. A outra via o Exército como uma elite formadora de ideologia e capaz de comandar o país - sustenta a historiadora Karla Carloni, da UFF.

A crise se arrastou até o dia 1º de novembro, no enterro do presidente do Clube Militar, general Canrobert Pereira da Costa, quando o coronel Jurandir Mamede atacou publicamente os candidatos eleitos e se pronunciou contra a sua posse. O general Lott não tolerou o discurso, julgando-o insubordinação, e quis punir o coronel. Mas encontrou uma dificuldade: Mamede era da Escola Superior de Guerra, portanto subordinado à Presidência da República e não ao Ministério da Guerra.

Lacerda e Luz estavam no navio

Lott não foi atendido pelo presidente Café Filho, que assumira o cargo em 1954 com a morte de Vargas - era vice-presidente na época. Café logo depois se afastou da presidência alegando problemas de saúde. Em seu lugar, assumiu Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados e simpático ao esquema da UDN. Irritado com a disposição de Luz em não punir Mamede, Lott pediu demissão. Mas foi convencido a permanecer no cargo e armar um contragolpe, com o decisivo apoio do general Odílio Denis, então comandante da Zona Militar Leste, para neutralizar a conspiração. Eles decidiram ocupar com tropas os pontos-chaves da capital e forçar a punição.

- Lott representou a expressão maior do grupo legalista. Ele era considerado um militar profissional, que até aquele momento não se envolvera na política. Mas assumiu um papel central no episódio porque, antes de tudo, quis defender a hierarquia e a disciplina na tropa - disse Karla Carloni, que acaba de defender uma dissertação de mestrado sobre o tema.

Acuados, os golpistas rumaram para o Ministério da Marinha e, de lá, embarcaram no Tamandaré rumo a Santos, onde pretendiam montar um governo de resistência com o apoio do governador Jânio Quadros. Além de Carlos Luz, subiram a bordo o deputado federal Carlos Lacerda, considerado o principal líder civil da conspiração, e o coronel Mamede, entre outros.

Mas a trama estava condenada ao fracasso. Agindo mais rápido, Lott determinou que as fortalezas costeiras barrassem o navio, enquanto também ocupava com tropas pontos estratégicos de São Paulo e Santos. O navio conseguiu passar - o tiro mais próximo atingiu a água, a 50 metros do Tamandaré - mas teve de retornar ao Rio. Luz foi destituído pelo Congresso, que empossou no seu lugar o vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Estava garantido o caminho para a posse de JK, cerca de dois meses depois.