Título: O PREÇO DA ASTÚCIA
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 12/11/2005, Opinião, p. 7

Depois de declarada a Independência, os dirigentes do Império decidiram educar os filhos da pequena aristocracia livre, excluindo os escravos. O número de escolas públicas de qualidade aumentou com a República, mas as massas continuaram sem acesso à educação.

Quando o desenvolvimento e a urbanização começaram a pressionar pela educação das multidões dos centros urbanos, os astutos dirigentes abriram escolas públicas municipais, sem recursos nem qualidade, e transferiram seus filhos para escolas privadas de qualidade, cuidando de financiá-las em parte com dinheiro federal, por meio de renúncia fiscal.

Hoje, o topo da pirâmide social gasta R$58 bilhões com a educação privada de seus 7 milhões de filhos, e recebe de volta R$1,1 bilhão, como restituição do Imposto de Renda. Enquanto isso, os 48 milhões de alunos do ensino básico público recebem R$34 bilhões, dos quais apenas R$4 bilhões são recursos federais. Graças à astúcia da aristocracia republicana, a União gasta anualmente R$250 por aluno do topo da pirâmide social, e R$92 por aluno da base.

Os dirigentes abandonaram o ensino básico aos municípios e estados, mas mantiveram o financiamento da União para as universidades. A astúcia do topo inventou um mecanismo de seleção dos melhores entre os seus filhos para restringir o acesso à educação superior gratuita e de qualidade, graças à educação básica de qualidade que eles recebem. Algo como uma astuciosa cota de exclusão para os filhos dos pobres. Tendo recebido uma educação fundamental de péssima qualidade, paga pelos municípios, os filhos da base abandonam o ensino médio, ou não disputam o vestibular em igualdade de condições com os filhos do topo, que receberam boa educação. E a União paga por ano quase R$10 mil para cada filho do topo na universidade federal. Nossa democracia republicana não ameaça privilégios aristocráticos.

Quando percebe o aumento da demanda por acesso à educação superior, o topo novamente mostra sua astúcia: em vez de aumentar o número de vagas nas universidades estatais, libera a criação de faculdades particulares, mantendo as universidades federais, gratuitas e com qualidade, para seus filhos. A juventude abaixo do topo vê novos horizontes, mas em cursos sem qualidade, e à custa de imensos sacrifícios, às vezes da falência financeira de suas famílias.

Quando essa falência começa a gerar insatisfação, astuciosamente o topo decide isentar de impostos as universidades particulares que ofereçam bolsas de estudo. Retiram mais R$57 milhões da União para o ProUni financiar parte do custo de 112 mil vagas em faculdades particulares, mas não ampliam os gastos com os 48 milhões de alunos do ensino básico.

Mas toda astúcia tem um preço. O Brasil percebe o alto custo do abandono da educação básica. Porém, em vez de trocar a astúcia pela solução, o topo apresenta o Fundeb - um investimento adicional, por parte da União, de R$1,9 bilhão para a educação básica em 2006, e que pretende chegar a R$4,3 bilhões em quatro anos - e o anuncia como um grande feito. É a astúcia do Fundeb do governo do PT, que se diferencia da astúcia do Fundef do governo do PSDB por míseros R$37 a mais por aluno, por ano. Mas não promove uma ação direta da União na educação básica de todas as crianças.

O pior da astúcia é que ela amarra o topo no seu egoísmo, e engana a base na sua ilusão. Amarra até os que conseguem identificá-la, mas que terminam por defendê-la, como sendo um mal menor. Porque parece melhor a astúcia que engana do que as promessas que parecem nunca se realizar.

Entretanto, não seria difícil trocar a astúcia por um investimento aliado a uma Lei de Responsabilidade Educacional, que permitisse, em poucos anos, garantir a todas as crianças escolas bem equipadas, com horário integral, professores bem formados e bem remunerados, dirigentes com responsabilidade, e um topo da pirâmide com patriotismo e inteligência, no lugar da burra astúcia republicana.

O preço da astúcia é muito maior do que o custo da solução.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).