Título: A conexão Angola do valerioduto
Autor: Jailton de Carvalho
Fonte: O Globo, 13/11/2005, O País, p. 3

Off-shore usada por Marcos Valério mandou dinheiro até para ministro daquele país

As investigações sobre o valerioduto devastaram o núcleo central do governo Lula, atravessaram o Atlântico e, agora, podem se transformar num campo minado também para o governo do presidente de Angola, José Eduardo dos Santos. Na busca dos tentáculos internacionais do empresário Marcos Valério de Souza, os investigadores do caso esbarraram em 21 remessas do Trade Link Bank, uma off-shore com sede nas Ilhas Cayman, para o ministro das Finanças de Angola, José Pedro de Morais Júnior, e para o presidente do Banco Nacional (o Banco Central daquele país), Amadeu de Jesus Castelhano Maurício, dois dos principais integrantes da equipe econômica de Santos. No total foram remetidos para contas das duas autoridades cerca de US$2,7 milhões.

Com estreitas ligações com o Banco Rural, o Trade Link Bank está no centro das investigações sobre o suposto mensalão do PT para parlamentares da base, o mais rumoroso escândalo do governo Lula. Mas isso não significa que o valerioduto mandou dinheiro para Angola. O que investigadores acreditam é que o dinheiro enviado para as autoridades angolanas apenas pegou carona no mesmo esquema de movimentação de recursos no exterior.

Empresas do Brasil são investigadas

Os papéis não registram quem são os pagadores que recorreram ao Trade Link. Mas os investigadores consideram as operações suspeitas e estão apurando, em sigilo, supostos vínculos de empresas brasileiras, beneficiárias de contratos milionários em Angola, com os políticos locais. Os investigadores querem saber quem autorizou as transferências de recursos e por que o esquema recorreu a uma off-shore com sede num paraíso fiscal para fazer pagamentos expressivos a importantes dirigentes políticos.

Pelos extratos bancários obtidos com a quebra do sigilo bancário da Trade Link nos Estados Unidos, a off-shore fez 20 remessas no valor aproximado de US$2,6 milhões para contas do ministro Pedro de Morais entre 2003 e este ano. As remessas variam de US$76 mil a US$360 mil. Os documentos oficiais registram que, só em 2003, a Trade fez 12 transferências para Morais no valor de US$1,4 milhão.

Os recursos saíram de uma conta do Trade Link, no Banco Standard, em Nova York, e seguiram até uma conta em nome de Morais no Banco Internacional de Crédito (BIC), em Lisboa, Portugal. A estratégia mudou nos dois últimos anos, quando a off-shore repassou US$1,2 milhão em oito parcelas a Morais. Em operações mais complexas, o dinheiro saía de contas da Trade Link no Standard ou no banco Wachovia e passava pelo BIC, em Lisboa, antes de voltar para uma conta em nome de Pedro Morais no Bank Fund Staff, em Washington.

Dinheiro depositado em Nova York

As relações da Trade Link com integrantes do governo de Angola não param por aí. Nos extratos da off-shore consta uma remessa de US$176 mil para Amadeu Castelhano, a mais alta autoridade monetária de Angola, no dia 12 de março de 2002. O dinheiro saiu da conta da Trade no Standard, passeou pelo Banco Africano de Investimentos, do outro lado do Atlântico e, depois do giro internacional, voltou a uma conta em nome de Amadeus, no Citibank, em Nova York.

A Trade e o Rural são dois dos principais alvos das investigações de uma força-tarefa do Ministério Público Federal, da Polícia Federal, no Paraná, da CPI dos Correios e até da Promotoria Pública de Nova York. As investigações começaram em 1996, no início do caso Banestado, e recentemente se cruzaram com as apurações em curso na CPI dos Correios. Os parlamentares descobriram que Valério usou a Trade Link para fazer 11 remessas de cerca de US$900 mil para a Dusseldorf, off-shore do publicitário Duda Mendonça com sede nas Bahamas e conta no Bank Boston, em Miami.

Procurados pelo GLOBO na sexta-feira, José Pedro de Morais e Amadeu de Jesus não foram localizados. O chefe da assessoria de imprensa do Ministério das Finanças, Bastos de Almeida, disse que Pedro de Morais só deve se manifestar depois da publicação da reportagem. Bastos disse que nada sabe sobre as supostas transações de Pedro de Morais com a Trade Link. Mas alega que, pela legislação angola, administradores públicos podem receber até 15% do valores dos negócios que ajudam a concretizar.

¿ Há pagamentos que são legais. Nem tudo é corrupção ¿ afirmou Bastos.

Esta não é primeira vez que um escândalo político brasileiro atravessa a fronteira e bate às portas de Luanda. Em 1992, o atual diretor da Polícia Federal, delegado Paulo Lacerda, instaurou um inquérito para investigar negócios suspeitos do empresário Paulo César Farias, ex-tesoureiro do então presidente Fernando Collor de Mello, com empresários e políticos angolanos.

Empresas deram dinheiro a PC Farias

Ao longo das investigações, Lacerda recolheu documentos mostrando que as empreiteiras Odebrecht e a Servia, duas gigantes do setor, repassaram US$7,2 milhões para PC Farias. As duas empresas tinham fortes interesses nas obras de reconstrução de Angola, devastada pela guerra civil. A Odebrecht estava interessada na construção de Capanda, a maior usina hidrelétrica do país. A Servia ambicionava abocanhar os contratos de construção de casas populares.

Parte das obras de Capanda seria bancada com recursos de uma linha de crédito especial de US$80 milhões do Comitê de Financiamento às Exportações, do governo brasileiro. Após o impeachment de Collor e a morte de PC Farias as investigações perderam força.