Título: Tiro certeiro
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 10/11/2004, O País, p. 4

Empossado o vice-presidente da República no Ministério da Defesa, parece pacífico entre os estudiosos da questão militar que esta é a melhor solução até agora encontrada, desde que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso criou o novo cargo, colocando os ministérios militares sob o comando de um civil. Mesmo levando-se em conta o fato de Alencar não ser demissível com facilidade do cargo que acumulará, pois isso significaria um rompimento político com graves conseqüências para o governo. Por outro lado, o peso do cargo e dos votos de Alencar dá a ele um prestígio inigualável para tratar com as Forças Armadas.

O ministro inaugural, ex-senador Élcio Alvarez, foi uma escolha desastrada politicamente para iniciar um processo tão delicado, enquanto o advogado-geral da União, Geraldo Quintão, teve uma passagem não conturbada, mas burocraticamente inócua pelo ministério, não fazendo com que o novo conceito evoluísse.

O diplomata José Viegas, como primeiro ministro da Defesa do governo Lula, se teve o mérito de não politizar a questão militar durante sua gestão, sem dúvida politizou propositalmente sua saída, aproveitando a indisciplina caracterizada pela nota oficial do Exército sobre as supostas fotos do jornalista Vladimir Herzog, praticamente defendendo os métodos utilizados pelos órgão de repressão política da ditadura, incluindo a tortura.

O episódio, aliás, foi tão extemporâneo, e de tal maneira cercado de mal-entendidos, que há quem o imagine como uma armação dos serviços de segurança desde o início, com o propósito de criar embaraços ao ministro, e sua conseqüente demissão. De todo modo, há também uma concordância entre os estudiosos: os militares, hoje, se preocupam muito mais com o reaparelhamento das Forças Armadas, ou com a defasagem de seus salários, do que com questões políticas.

O professor Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, por exemplo, acha que ¿o problema é o perfil das pessoas que foram indicadas para assumir o Ministério da Defesa, e sua capacidade de resolver a questão do orçamento dos militares¿. Segundo ele, ¿há muito tempo as Forças Armadas estão sendo negligenciadas pelos presidentes que se sucederam depois dos governos militares, especialmente no governo de Fernando Henrique¿.

Ele reconhece no governo Lula ¿um certo interesse para encaminhar a solução do problema dos militares, que são questões ligadas diretamente à defesa, e também dizem respeito aos salários, que estão defasados quando se faz comparação com várias carreiras de Estado¿. Desse ponto de vista, a escolha do vice José Alencar, um político e empresário ¿que sabe negociar e tomar decisões¿, seria bem vista pelos militares que, segundo Cavagnari, ¿já entenderam que precisam de um ministro forte para lutar por suas demandas¿.

As demandas militares diriam respeito à renovação de equipamento, à licitação das novas aeronaves para cobrir o espaço aéreo brasileiro, e a renovação material da Marinha e do Exército. ¿Precisa haver um programa de longo prazo, de maneira que se recupere a capacidade operacional das Forças Armadas¿, diz Cavagnari. Já Maria Celina D¿Araujo, da FGV e co-autora do livro ¿Visões do golpe, a memória militar de 64¿, acha que a nota do Exército que gerou a crise no Ministério da Defesa ¿foi completamente extemporânea, não reflete o que é o pensamento das Forças Armadas, nem do Exército¿.

Ela caracteriza o episódio como ¿um resíduo de Leônidas Pires Gonçalves (ex-ministro do Exército), do DOI-Codi, do sistema repressivo¿. A professora diz que ¿a nossa elite civil, os nossos governantes, a começar pelo PT, não têm coragem de enquadrar os militares. O que houve ali foi um ato de indisciplina militar, e isso é grave¿. Para ela, nossa elite ¿não leva a sério o fato de que governa para todos, e fica com um certo receio dos militares, que não faz mais sentido.¿

Ela vê nesse episódio ¿um retrocesso¿ e diz que quem se sai muito bem dele é Viegas: ¿Fez um subordinado se retratar, e depois se demitiu. Já que não tinha o apoio de cima, não precisava ficar exposto. É a única pessoa do governo que mostrou serenidade, objetividade, e autoridade para lidar com o assunto¿ Maria Celina diz que o governo trata os militares ¿com a mesma neura de quando eles eram uma instituição de repressão. Hoje eles querem ser uma instituição da ordem. Nós é que os tratamos como se eles estivessem acima da lei.¿

Desse ponto de vista, ela acha que a nomeação do vice é boa ¿porque quando você não sabe lidar com o problema, dá um tratamento VIP¿, ironiza. A professora acha que o governo Lula ¿tem sido um governo omisso, que deu margem a esse tipo de manifestação. Ficamos alimentando uma falsa crise, dando aos militares um poder que eles não têm, não querem ter nem precisam ter¿. Uma faceta dessa ¿falsa crise¿ seria a maneira tímida com que o governo vem tratando a substituição do comandante do Exército, General Albuquerque.

Expedito Carlos Stephani Bastos, pesquisador de assuntos militares da Universidade Federal de Juiz de Fora, também achou a indicação do vice ¿fator de grande conciliação¿. O fato de ser um empresário pode ajudar a entender as necessidades da pasta e acrescenta: ¿Além de ser um nacionalista, o que pode em muito ajudar nas questões voltadas para a indústria de defesa nacional¿.

Bastos não acredita numa crise entre o governo e as Forças Armadas: ¿Os problemas que afligem as Forças Armadas são muitos, salário é um deles, mas reequipá-las também é um dos principais¿. Na sua avaliação, estamos ¿em grande desvantagem com as novas tecnologias e equipamentos mais modernos, é grande a defasagem, principalmente tecnológica, que nos distancia a cada dia do mundo moderno¿.

Bastos vê na indefinição do projeto FX (compra de 12 aviões de caça) um sério risco, maior ainda se a decisão for política, e não técnica: ¿Isso pode levar a uma escolha não adequada para um salto importante na parte de tecnologia e de equilíbrio regional, que poderia dar uma grande capacidade estratégica ao país¿.

Alencar deveria, na opinião de Bastos, ¿fazer as três Armas interagirem com o que resta de nossa indústria de material de Defesa, o que poderia nos dar um fator de independência¿. Segundo ele, o material bélico poderia também ¿ser importante para consolidar alianças na região¿.