Título: MENOS RUIM
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 15/11/2005, O País, p. 4
A medida provisória que cria a Super-Receita provavelmente não será aprovada até o fim desta semana, quando caduca seu prazo de validade. E não porque os congressistas sejam contra seu conteúdo, pois, ao contrário, até mesmo a oposição admite seus méritos. Mas se for derrotada, como tudo indica, o será por um movimento dos congressistas, ecoado pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, contra o que alguns classificam de "incontinência legisferante" do governo Lula, que se compara com a de seu antecessor, cujo autoritarismo tanto criticava.
O governo Fernando Henrique, entre 2001 e 2002, chegou a editar mensalmente uma média de 6,8 MPs, embora em alguns anos tenha reduzido o uso das MPs, chegando a uma média de 1,9 em 2000. A média de Lula é de 4,8 medidas mensais.
O emprego abusivo de medidas provisórias está entre os temas mais debatidos no constitucionalismo brasileiro, e a reforma de 2001, que procurou limitar o seu emprego proibindo reedições, por exemplo, não foi suficiente para impedir os abusos, e ainda se adotam medidas provisórias sem que a urgência esteja nítida, como agora apontam os senadores em relação à Medida 258 da Super-Receita.
A tese de doutorado do professor Leonardo Alves Lamounier, doutor em sociologia e ciência política pela UFMG e diretor da Fundação João Pinheiro, sobre a relação entre os poderes Executivo e Legislativo no Brasil contemporâneo, no período de 1989 a 2002, com um foco específico sobre os vetos presidenciais, tem revelações surpreendentes, especialmente no que toca às medidas provisórias. Descobriu, por exemplo, que quanto maior o apoio partidário do governo no Legislativo, mais o Executivo utilizou as MPs, "quando seria de se esperar que governos majoritários utilizassem menos proposições extraordinárias", analisa.
Em outra vertente da pesquisa, Lamounier buscou medir o impacto das ações dos legisladores sobre as proposições de lei em tramitação no Congresso. Procurou medir, ao longo do período do estudo, as razões que pudessem determinar o uso do veto pelo Executivo, e dentre as variáveis que listou estão o tamanho da maioria governista; o tipo de projeto que o Executivo utiliza para encaminhar suas propostas legislativas, se por meio de MPs ou de projetos de lei ordinários; e, por fim, como os legisladores atuam de modo a alterar o conteúdo das proposições.
Os testes de Lamounier indicaram que há uma relação positiva entre o tamanho dessa maioria e a emissão de MPs, e uma relação negativa com os projetos de lei ordinários, exatamente o contrário do que seria lógico supor. Lamounier ressalta: "Esse achado é novidade, e contraria o que a literatura (nacional e internacional) preconizava, ou seja, que governos de minoria tendem a utilizar decretos ao invés de projetos de lei com tramitação ordinária".
Teoria que também cai por terra com o resultado da pesquisa é a de que no Brasil os governos se utilizam de MPs ou de projetos de lei dependendo do interesse ou da conveniência do momento. "As análises me permitem afirmar que, mesmo contando com maiorias folgadas, os diversos presidentes se utilizaram das MPs para produzir as políticas de seu interesse", garante Lamounier.
Outro ponto relevante do estudo foi a relação negativa entre as MPs e os vetos, indicando que maior uso de MPs implica menos vetos. Para analisar melhor essa relação, Lamounier acompanhou a tramitação dos projetos de lei, e analisou como se dava a atuação dos legisladores sobre esses projetos em tramitação no Congresso. E, na outra ponta, verificou como essas alterações eram recebidas pelo Executivo, através da aplicação ou não do veto. Trabalhou apenas com vetos parciais, que, como ele define, "representam, num mesmo evento, a aceitação ou não pelo Executivo, de uma alteração proposta e aprovada pelo Legislativo".
Um teste estatístico indicou que as emendas aprovadas pelos legisladores em MPs "são menos suscetíveis de receber o veto do presidente do que emendas em PLOs". Com isso, diz Lamounier, "desmonta-se a versão de que as MPs representam uma usurpação de poder pelo Executivo". Ele diz que "não há dúvida de que elas constituem um forte instrumento para a produção legislativa, e que são uma delegação de poder conferida ao Executivo. Mas elas não impedem a participação dos legisladores no processo legislativo, pois quando eles apreciam as MPs, alterações são apresentadas e aprovadas. E o Executivo, por sua vez, aceita a maior parte dessas modificações, se comparadas aos projetos de lei ordinários".
De todo o seu estudo, Leonardo Lamounier diz que é possível afirmar que "o Executivo é muito forte na determinação da agenda legislativa no Brasil, pois ele pode ser autor de propostas de lei, diferentemente do presidente dos EUA, mas o Legislativo é um ator mais forte e importante do que é suposto na literatura: cabe aos legisladores alterar essas propostas, inclusive as MPs, cujos impactos são mitigados pela ação dos parlamentares".
A base dessa relação é o que o sociólogo chama de "reciprocidade estratégica" que há entre esses poderes, "pois os interesses de ambos na produção legislativa geralmente são preservados e todos ganham de certa forma". Mas Lamounier ressalva o que pode explicar a atual crise entre Legislativo e Executivo: "Para que esse padrão de relação se estabeleça, é preciso que haja uma coordenação política, de modo que o sistema seja confiável para todos os atores". Ele acredita que a eleição de Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara tenha quebrado esse padrão de confiança, e explique essa crise política em que vivemos.