Título: A RESERVA ESTRATÉGICA DO MERCOSUL
Autor: RUBENS BARBOSA
Fonte: O Globo, 22/11/2005, Opinião, p. 7

Aágua é uma commodity preciosa e cada vez mais escassa. Já foi causa de guerras por disputas por sua utilização. O uso de recursos compartilhados de rios é motivo de rivalidades e de discórdias entre países, como já ocorreu inclusive com o Brasil e a Argentina, na década de 70. Nos dias de hoje, sabe-se que a escassez de água começa a ser um real e agudo problema em algumas regiões, como a Califórnia, e países, como a China e Israel, por exemplo.

Segundo dados da FAO, a América do Sul dispõe do maior potencial de recursos hídricos do mundo. Não estou me referindo ao volume de rios, lagos e pântanos da região, que, só no Brasil, representam cerca de 12% de toda a água doce do mundo e 53% do total da América do Sul.

Não sei se todos se dão conta de que, menos conhecido do que os recursos hídricos de superfície, existe, no território do Mercosul, um enorme reservatório de água subterrânea que constitui uma importante reserva estratégica.

Esse reservatório natural é conhecido pelo enigmático nome de Aquífero Guarani, pelo fato de sua extensão coincidir em grande parte com a Grande Nação Guarani, que habitava ¿ e ainda habita ¿ a região.

O aqüífero é transfronteiriço porque está localizado por baixo do território de quatro países sul-americanos. Estima-se que a área total seja de aproximadamente 1,2 milhão de quilômetros quadrados (na Argentina sua extensão é de 225.500km²; no Brasil, de 840.000km²; no Paraguai, de 71.700km²; e no Uruguai, de 58.500km²). A parte localizada no Brasil representa cerca de 70% da extensão total do reservatório, inclui oito estados, e corresponde a uma área igual a Inglaterra, França e Espanha juntas.

O Sistema Aqüífero Guarani contém mais de 40.000km³ de água. De acordo com estudos do Banco Mundial, estima-se que 90% desse volume sejam potáveis. A quantidade de água no sistema equivale ao total do volume de água que corre pelo Rio Paraná durante um período de 20 anos. Considerando-se como sendo de 300 litros por dia o consumo de água per capita, o aqüífero pode atender à demanda de 360 milhões de pessoas em base sustentável. A partir de poços profundos, por unidade, ocorre uma retirada de até um milhão de litros por hora. Em um período de 100 anos, apenas cerca de 10% do total das reversas de água terão sido utilizados.

Caso esse reservatório não seja conservado de maneira sustentável ou se ele se tornar poluído, problemas sérios poderão ocorrer no futuro para a agricultura, para a indústria e para o uso doméstico.

Quanto à preservação da qualidade, devem ser tomadas providências de proteção, necessárias para controlar os efeitos das atividades potencialmente poluentes (espalhamento de resíduos sólidos, excesso de agroquímicos, construção de poços).

Inexistem até aqui mecanismos legais e regulatórios para o uso adequado desses recursos subterrâneos. Tanto no âmbito das Nações Unidas quanto no contexto do Mercosul, o que está sendo discutido é como regulamentar a exploração e a preservação dos reservatórios.

As tratativas para um acordo encontram-se em fase final no âmbito do Mercosul, com dois pontos pendentes: a possibilidade de um dos Estados poder paralisar uma ação de exploração do recurso aqüífero, caso entenda que possa prejudicar os interesses dos demais, e como resolver esses conflitos potenciais.

O Projeto para a Proteção Ambiental e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Aqüífero Guarani, em discussão no âmbito do Banco Mundial, vai permitir aumentar o conhecimento técnico sobre o recurso e propor um marco técnico, legal e institucional para sua gestão coordenada entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, visando a sua preservação. A sua grandeza e a coincidência de estender-se exatamente abaixo do território do Mercosul torna o Guarani um importante manancial hídrico, verdadeira reserva estratégica para o abastecimento da população e para o desenvolvimento socioeconômico da região.

É hora de pensar seriamente no assunto, antes que essa imensa riqueza natural passe pelos mesmos problemas do Mercosul, pois o processo de integração ¿ que os países membros tornam tão difícil na superfície ¿ realiza-se, com a colaboração da Natureza, com mais tranquilidade, no silêncio dos subterrâneos dos quatro países.

RUBENS BARBOSA é consultor e presidente do conselho de comércio exterior da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).