Título: A estrada
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 17/11/2005, Economia, p. 28

Há uma velha briga no Brasil entre forças, grupos de interesse e idéias. Não é uma divisão maniqueísta entre pessoas; há personagens que trocam de lado em momentos diferentes. O ministro Antonio Palocci falou dessa briga que nos trouxe a um país de inflação de um dígito e sob uma Lei de Responsabilidade Fiscal. Ela continuará pelos anos seguintes. Foi essa disputa que opôs Palocci a Dilma.

Palocci viu a estrada que a ministra não viu. Nessa estrada, o país tem caminhado da desordem fiscal e superinflação à situação atual. O país vai continuar sua caminhada e vai punir quem não conhecer sua lógica. Na imprensa isso é definido como disputa entre monetaristas e desenvolvimentistas. É uma simplificação que nem de longe mostra o que realmente os divide. O único desenvolvimento possível é o que se faz sob as bases de uma moeda estável, e não há estabilidade possível se o governante pensa que "um pouquinho mais" de inflação é algo inofensivo, ou se pensa que "despesa corrente é vida", como disse Dilma Rousseff. As despesas correntes precisam ser contidas, racionalizadas, focadas, para que haja desenvolvimento sustentável.

O ministro Antonio Palocci traçou uma linha que começou no fim da conta movimento do Banco do Brasil e a criação da Secretaria do Tesouro no governo Sarney, passou pelo Plano Real, no governo Itamar, foi para o câmbio flutuante, sistema de metas de inflação e Lei de Responsabilidade Fiscal, no governo Fernando Henrique. Nessa linha é que incluiu o esforço do governo Lula de manter a estabilidade.

Ao traçar essa linha, ele contrariou profundamente o discurso marco zero do presidente Lula, que sustenta que tudo no Brasil começou no atual governo. Poderia ter contrariado até mais. Seria justo pôr nessa lista de etapas da modernização do Brasil a abertura comercial e cambial do Brasil iniciada no governo Collor.

Não se trata de julgar os personagens, mas alguns dos seus atos. É como se a mão invisível do país, na busca de alguns objetivos, empurrasse os personagens para as decisões mais corretas. O ministro Palocci tem sido, na definição da política econômica, essa voz sensata. Seu destino, no entanto, está traçado. Dificilmente ele sobrevive à atual tempestade política por um detalhe: foi abandonado pelo chefe dele. Ontem mesmo o presidente Lula fez um discurso em que falou da economia sem tocar no tema que o fragilizou: o ataque da ministra Dilma Rousseff.

Em cada etapa dessa estrada de 20 anos, houve ferrenhas batalhas. A conta movimento do Banco do Brasil era boa para muita gente. Por ela, o BB podia gastar quanto fosse, podia ser ineficiente, podia emprestar sem garantias, distribuir crédito rural com subsídio e não se preocupar com a inadimplência crônica do setor, repassar quantias infinitas para seu fundo de pensão. Contra o fim da conta movimento uniram-se os funcionários do BB, os empresários que deviam ao banco, os produtores rurais que nunca pagavam seus créditos, o Conselho Monetário Nacional, que abrigava vários lobbies, e os parlamentares que representavam esses interesses. A decisão de acabar com aquela promiscuidade monetária foi o primeiro passo da construção do Brasil moderno.

Houve outras etapas. Em todas os defensores do suposto "desenvolvimentismo" pregaram contra o avanço. Nessas batalhas, o PT esteve do lado errado inúmeras vezes. Votou ou vociferou contra a maioria dessas etapas. Só para citar duas delas: o Plano Real e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A ministra Dilma, quando defende a tese de que não é possível criar limites às despesas correntes porque não se sabe como será o futuro, repete o mesmo argumento usado contra a LRF. Ela também foi aprovada sem se saber quais seriam as pressões futuras, mas com a compreensão de que os gastos públicos precisam de parâmetros para não oscilar ao sabor da força dos lobbies.

O ministro Palocci viu essa estrada de lenta construção da estabilidade que a ministra Dilma ainda não viu. Ela se deixa conquistar pelo discurso de gastar mais achando que isso levará a mais crescimento e à vitória nas eleições. O ministro segue os passos de quem entendeu que é preciso austeridade, controle dos gastos, inflação sob estrito controle para que se garanta o crescimento sustentado.

Em outro campo, o ministro Palocci se defendeu das denúncias de irregularidades em Ribeirão Preto. Essa é outra batalha. O ato de ontem não resolveu o assunto. Ele deu algumas pinceladas em sua defesa. Tem alguns bons argumentos. Um deles foi o de ter escolhido seus assessores diretos entre os quadros que a República do Brasil formou, mesmo sem conhecê-los. Outro foi que certos procedimentos do Ministério Público, dos processos de investigação, não têm respeitado o que determina o ritual democrático. Se excessos forem comprovados, o país precisa corrigi-los. Isso ameaça não uma pessoa, uma autoridade; ameaça o estado de direito, conquistado em outra longa caminhada do povo brasileiro.

O ministro Palocci falou ontem para o país, olhou a estrada antes e depois dele e mostrou que sabe que duas batalhas estão misturadas. A da investigação de irregularidades vai continuar, e certamente ele terá de voltar ao Congresso. A outra, mesmo que ele caia, acabará vencendo. Se o governo Lula ameaçar a estabilidade econômica, estará cavando seu próprio fim.