Título: Aleivosias caricatas
Autor: HAROLDO LIMA
Fonte: O Globo, 11/11/2004, Opinião, p. 7

O Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para julgar a constitucionalidade de artigos básicos da lei 9.478/97, a Lei do Petróleo. A VI Rodada de Licitações de blocos para exploração de petróleo, realizada em agosto, baseou-se nessa lei, assim como as cinco rodadas anteriores, todos os contratos de concessão e atos da Agência Nacional do Petróleo (ANP) nos últimos seis anos.

A ação foi impetrada às vésperas da VI Rodada, se quando veiculou a idéia de que o leilão seria ilegal e politicamente contrário aos interesses nacionais. O STF decidirá sobre o aspecto jurídico. Já o aspecto político pode ser mais bem esclarecido.

Três foram os pontos mais acentuados na campanha contra a VI Rodada: 1) as licitações, introduzidas no governo passado, deveriam ser suspensas ou adiadas; 2) o governo, via ANP, estaria planejando entregar às multinacionais áreas nas quais a Petrobras havia descoberto petróleo; 3) a exportação do petróleo, pelas multinacionais, seria grave ameaça ao Brasil.

Tais idéias estão longe da verdade, mas, mesmo aleivosias caricatas, quando repetidas, podem suscitar dúvidas em gente seriamente preocupada com os interesses brasileiros.

Desde que a lei 9.478 entrou em vigor, em 1997, no Brasil uma empresa, incluindo a Petrobras, só pode explorar petróleo, em nova área, arrematando-a em leilão aberto e firmando com a ANP um contrato de concessão.

Conhecemos cerca de 7% de nossas bacias sedimentares ¿ o que é muito pouco ¿ e exploramos apenas 3% delas. Para o país, é vital avançar no conhecimento de suas potencialidades. Sustar a VI Rodada condenaria todas as empresas, a Petrobras inclusive, à estagnação exploratória. Limitaria a auto-suficiência, prevista para ser alcançada no final de 2005, a uma duração muito curta.

A notícia de que multinacionais arrematariam blocos onde petróleo já fora descoberto era falsa. A ANP, seguindo instruções do ministério, escolheu para licitar 60% dos seus blocos em locais de ¿novas fronteiras¿, 33% em ¿bacias maduras¿ e 7% em áreas de elevado potencial, incluindo áreas próximas de onde ocorreram descobertas. A Petrobras arrematou, sozinha ou com sócios, brasileiros ou estrangeiros, 107 blocos, 71% do total arrematado, 61 no mar e 46 em terra, 52% dos blocos arrematados em terra, 94% dos arrematados em mar, onde estavam os ¿blocos azuis¿. O risco de as multinacionais levarem a quase totalidade dos blocos, sobretudo áreas dos chamados ¿blocos azuis¿, não passou de uma fantasia.

Sobre a ameaça que a exportação de petróleo nos traz, duas observações. A primeira é que parte do petróleo exportado é de óleo pesado, praticamente trocado pelo leve importado, por facilidades de refino; outra, exportada pela Petrobras e a Shell, é de pouca expressão. A segunda nos remete à Lei do Petróleo. Ela dá ao Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), a atribuição de propor ¿políticas nacionais e medidas específicas¿ destinadas a ¿preservar o interesse nacional¿. Essa ¿medida específica¿ pode ser uma medida provisória, de efeito imediato.

Hoje, quem quiser explorar e produzir petróleo terá também de assinar um contrato de concessão com a ANP, que em seu item 11.5 estabelece que, ¿se em caso de emergência nacional...¿ houver necessidade de limitar exportações de petróleo ou gás natural, a ANP poderá determinar que o concessionário atenda ¿às necessidades do mercado interno¿.

A VI Rodada trouxe avanços incontestes. A ANP tornou obrigatória a compra de componentes nacionais a serem usados e ampliou o peso deste item na avaliação das propostas. Com isso, cerca de 70% dos mais de R$ 2 bilhões em investimentos previstos para os próximos seis anos serão usados na compra de equipamentos e serviços da indústria nacional.

O incentivo às pequenas empresas foi respondido pela presença recorde de oito, todas nacionais, e pelo interesse em blocos localizados em bacias maduras, que representaram 58% dos arrematados. A projeção feita pelo Instituto de Economia da UFRJ de que os empregos diretos e indiretos gerados na indústria do petróleo, pela Petrobras e outras, passarão dos atuais 95 mil para 190 mil em um prazo curto, tem tudo para se concretizar.

A VI Rodada não escamoteou a soberania nacional, nem poderia fazê-lo. Tratou-a de forma mais aprofundada, situando a idéia de que não há soberania sem desenvolvimento. E bem ao contrário do que se propalou, serviu à soberania e ao desenvolvimento. HAROLDO LIMA é diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP).