Título: Autópsia de um factóide
Autor: PAULO RABELLO DE CASTRO
Fonte: O Globo, 11/11/2004, Opinião, p. 7
O Rio de Janeiro é o único estado do país que, com a mais absoluta transparência, divulga mensalmente os seus índices de criminalidade, sejam eles potencialmente favoráveis ou prejudiciais às avaliações equivocadas que, destituídas de rigor científico e entranhadas de oportunismo político, em nada contribuem para o julgamento sério e isento dos erros e acertos da política de segurança pública implementada.
O monitoramento e a análise dos índices ¿ tarefa a cargo do Instituto de Segurança Pública (ISP), presidido por uma antropóloga ¿ se destina exclusivamente a mapear a movimentação das manchas criminais pelo estado e redirecionar permanentemente as ações policiais de caráter preventivo e repressivo. Embora os boletins do ISP indiquem queda dos índices, as estatísticas jamais serão a tradução definitiva da violência, pois a sua percepção, em qualquer lugar do mundo, passa por outros aspectos, como a insegurança objetiva e a insegurança subjetiva, das quais falarei mais à frente.
Há várias maneiras de se avaliar seriamente políticas de segurança pública, mas a nenhuma delas recorreu o prefeito da cidade do Rio de Janeiro, em artigo recentemente publicado no GLOBO, sob o título ¿Convoquem as forças federais!¿ A análise desprovida de rigor científico ¿ compreensível, por se tratar de mera aventura em um universo desconhecido do autor ¿ e eivada de oportunismo político ¿ imperdoável, frente ao drama das famílias dos inocentes assassinados por facínoras ¿ resultou no cometimento de mais um factóide. Colhidas as digitais do autor, cabe agora a autópsia, que irá revelar os meios empregados contra a inteligência e a sensatez da opinião pública.
Os nossos índices de criminalidade mencionados no artigo estão corretos. Contudo, a ação do bisturi expõe que os dados foram insidiosamente distorcidos. O prefeito comparou os números absolutos de 18 modalidades de crime registrados nos anos de 1998 e 2004, sem considerar o crescimento populacional ocorrido no período. Ou seja, quando afirma que o crime de homicídio doloso apresentou aumento de 12,2% de 1998 (5.741 casos) para 2004 (6.441 casos), ele está, perigosamente, escondendo a verdade.
Respeitando-se a metodologia consagrada mundialmente em análise de estatísticas, a taxa anual de homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes foi de 41,2, em 1998, e de 41,7, em 2004, com um aumento percentual de 1,1%. O método é imprescindível à análise. Sem ele, a China, com os seus mais de um bilhão de habitantes, poderia vir a correr o risco de figurar, injustamente, entre os países mais violentos do mundo.
Para não tornar a leitura enfadonha, o leitor poderá constatar na internet (www.novapolicia.rj.gov.br) que a manipulação ardilosa se estendeu às outras 17 modalidades de crime. Aliás, citando somente mais alguns números, os da Secretaria Nacional de Segurança Pública demonstram que, embora os índices do Rio estejam bem acima do desejável, mesmo tendo eles sido reduzidos, foram cometidos em nosso estado, em 2003, 13,9% do total de roubos ocorridos no país e 23,3% dos registrados no Sudeste.
Antes de solicitar forças federais, o prefeito, além de estudar os preceitos constitucionais que condicionam a adoção da medida, deveria saber que a cidade por ele governada é a que concentra os maiores índices de criminalidade do estado, com 39,1% dos homicídios e 62,2% dos encontros de cadáveres. Vê-se que, se coubesse uma intervenção federal, pelo mapa da violência no estado, ela teria de ser cirúrgica na cidade do Rio. No entanto, as 156 mil prisões efetuadas e as 73 mil armas apreendidas pelos órgãos de segurança, nos últimos cinco anos, descartam definitivamente a cogitação de tal hipótese.
Com o reconhecimento unânime de que as tragédias sociais estão diretamente ligadas ao aumento da criminalidade, a prefeitura deveria cumprir a sua parte. Em reportagem recente publicada no GLOBO o prefeito admitiu o fracasso de não ter impedido a favelização da cidade.
Segundo pesquisa do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), a cidade do Rio, governada pelo atual prefeito nos oito dos últimos doze anos, é a mais favelizada do país, com 1,4 milhão de pessoas. A pesquisa informa que, nos últimos cinco anos, o número de favelas saltou de 599 para 630. A projeção do IETS é de que, em 2010, 21,1% da população da cidade estará concentrada em favelas. Obviamente, o prognóstico traz consigo a iminência de um maior entrincheiramento dos traficantes, com suas armas de guerra. A polícia continuará enfrentando os facínoras até que a paz esteja totalmente assegurada às populações de bem das favelas.
Quando cada um faz a sua parte, todos fazem menos e o resultado é melhor. Por isso, a prefeitura deveria também combater o caos do transporte urbano e determinar à Guarda Municipal a garantia da ordem nos espaços públicos. Os órgãos de segurança estão abertos a integrar os seus sistemas de câmeras e de comunicação com os da GM, para ações conjuntas.
Dissecado o factóide, cabe ainda constar do respectivo ¿laudo cadavérico¿ que o mesmo apresentava sinais típicos de lesões provocadas por alguém que almejava atingi-lo na sua parte mais frágil, a insegurança subjetiva que envolve os fatos. Enquanto a insegurança objetiva é gerada pelo contato direto com a violência, pelo conhecimento de sua ocorrência por terceiros ou sua reprodução correta na mídia, a insegurança subjetiva, inversamente, tem correspondência direta com o dimensionamento exacerbado dado ao fato real e, perigosamente, instala-se no inconsciente coletivo por meio de ardis, como o factóide, agora devidamente autopsiado.