Título: Até que a morte nos separe
Autor: PAULO RABELLO DE CASTRO
Fonte: O Globo, 11/11/2004, Opinião, p. 7

Faz muito tempo e aconteceu por muitos motivos. Há um quarto de século, pelo menos, foi caindo sobre a tão querida e heróica cidade do Rio de Janeiro o manto carmim da violência. Essa sensação permanente de insegurança, a desconfiança brotando de cada canto, atrás de cada esquina, da cidade que foi um dia maravilhosa para o mundo inteiro, esse medo constante da morte súbita, da bala desesperada, sem endereço certo, esses estalidos secos da guerra intermitente nos morros daquela que era a mais bela capital, esse cheiro constante de pólvora no ar, em pleno centro onde um dia, no passado, vicejava prosperidade e esperança, todas essas sensações mórbidas vão ganhando o espaço que antes pertencia à Vida no Rio de Janeiro.

Nesta cidade, onde, talvez não por acaso, o santo padroeiro é o alvejado São Sebastião, o cidadão carioca já custa, quando morto, mais do que vale, quando vivo. Se morto, por morte violenta, custa, calculadamente, cerca de um milhão de reais à cidade que o matou... É isso mesmo, caro concidadão. Alvejados e mortos, como São Sebastião, já estamos custando muito mais do que, em média, conseguimos juntar como capital pessoal ou familiar ao longo de uma vida. Cruel matemática da morte. Mas explica-se. É que, ao morrer de morte violenta, o carioca fuzilado assusta os que ainda ficaram vivos, baixando o já decaído moral da população, que apronta as malas e literalmente se despacha para outro lugar, mesmo que seja para São Paulo, tão violenta quanto o Rio, mas onde os emigrados consideram ser possível compensar o risco da morte com o maior valor da vida.

Os negócios fecham suas portas no Rio sob o terror da insegurança permanente. O desemprego crescente empurra as mentes mais fracas para os pequenos crimes, que abrirão caminho para os grandes. O homicídio no Rio passou a ter caso com a economia. Vivem juntos, estão homiziados, acoitados.

Cada homicídio, estatisticamente, suprime mais um milhão de reais do valor da produção carioca. O PIB do Rio, quer dizer, o conjunto da produção anual do município, é decepado em um milhão de reais adicionais, a cada turista abatido, a cada mulher esfaqueada, a cada criança baleada, a cada idoso atropelado e esmagado.

Essa história de horror começa por volta dos anos 70, quando a cidade se desorganiza, politicamente, a partir da fusão autoritária com o Rio de Janeiro fluminense, um casamento rejeitado, desde sempre, pelos noivos à força. Antes, porém, a cidade que fora, muito antes de Washington, a capital do Vice-Reino em 1763, é esbulhada de sua condição de centro político pelo propósito de interiorização em marcha forçada a partir da construção de Brasília. Para fazer idéia da violência que isso representou, basta pensar em propor a mesma idéia, agora de novo, levando a capital federal para Sinop, Mato Grosso (aliás, uma bela cidade) ou para Cruzeiro do Sul, no Acre. Não faz sentido, não é mesmo? Mas foi isso que fizeram com o nosso Rio de Janeiro, o Rio de todos os brasileiros.

Uma vez desconstruído o conceito da cidade-capital, foi-se o seu centro financeiro, fechou-se a Bolsa de Valores da cidade, partiram as empresas-sede de indústrias, emigrou a mão-de-obra mais educada, foram-se os mais jovens e mais talentosos, os geradores de idéias, de novos projetos, de novas empresas, os empregadores do povo, agora abandonado à própria sorte, e à maldade verborrágica dos políticos da miséria coletiva. Assim estamos hoje. Enquanto vivos, os cariocas estão valendo cerca de 60 mil reais per capita . É a quanto monta o valor do capital imobiliário e produtivo ainda instalado no perímetro do antigo Estado da Guanabara. A cidade-estado fora imaginada não só para manter sua autonomia e garantir a autodeterminação do povo do Rio, como também uma forma de compensar a partida do Distrito Federal para Brasília. Mas os planejadores do desastre não se contentaram. Suprimiram a autodeterminação do Rio sem consulta popular, em 1974, pela mão pesada da ditadura. Fusão, duplo estupro, morte cerebral.

Como está, a cidade do Rio de Janeiro não faz bem a si mesma, nem a seus habitantes, nem tampouco ao Rio fluminense, nosso sofrido e amado vizinho, nem muito menos, ao resto do Brasil, que se apieda e se envergonha de não querer mais visitar a ex-cidade maravilhosa. Se cada carioca vale hoje só 60 mil reais quando vivo, e 1 milhão, quando morto, se já valemos mais mortos do que vivos, é preferível que nos separemos já, enquanto estamos vivos, antes que a morte nos separe.