Título: RECALQUES
Autor: Mreval Pereira
Fonte: O Globo, 19/11/2005, O País, p. 4

Se a disputa eleitoral já estava informalmente nas ruas há muito tempo, na disputa política que se trava entre um governo em campanha permanente e a oposição dividida entre o desejo de deixar Lula sangrando em praça pública até derrotá-lo nas urnas e o receio de que, mesmo ferido, ele consiga chegar aos palanques e renasça das cinzas qual uma fênix populista a reboque das 11 milhões de famílias do Bolsa Família, ontem ela começou oficialmente.

Não apenas porque o PSDB elevou o tom de suas críticas, tendo à frente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, mas principalmente porque o presidente Lula, num delicioso ato falho, revelou seu segredo de Polichinelo: vai ser mesmo candidato à reeleição.

O presidente se empolgou em uma entrevista a radialistas e entregou o jogo: ¿Gosto do debate, adoro um debate, gosto de polêmica. É bonito. O povo vai se politizando. O povo vai ensinando a gente. É assim que penso. E vou, sim, disputar as eleições¿, disse Lula, citando o Bolsa Família e o biodiesel como ¿armas¿ do governo na campanha.

O ato falho é definido como o aparecimento, na linguagem falada ou escrita ¿ no caso de Lula, só podia mesmo ser na falada ¿ de termos inapropriados que remetem para conteúdos ou desejos recalcados. Quer dizer, o presidente Lula tem um desejo recalcado de se reeleger, e acha que consegue esconder esse seu ¿recalque¿ da opinião pública.

Depois do ¿ato falho¿, o presidente Lula voltou a falar contra a reeleição com o governador de Alagoas Ronaldo Lessa, a quem se declarou a favor de um mandato de cinco anos, em vez da possibilidade de oito anos que a reeleição dá aos presidentes brasileiros. Já houve anteriormente uma tentativa de movimento, defendido entre outros pelo deputado Delfim Netto, de prorrogar para cinco anos o mandato de Lula, e acabar com a reeleição.

A tese teria teoricamente o apoio de governadores, deputados e vereadores, que teriam também seus mandatos prorrogados. Mas o movimento não chegou a decolar naquela ocasião, e dificilmente teria melhor sorte hoje, com a situação política radicalizada como está.

Outro ¿recalque¿ que Lula não consegue esconder é em relação ao ex-presidente Fernando Henrique, que ontem deu o tom da oposição com a dureza de seu discurso e com os risos desabridos com as piadas de cômico cearense Tom Cavalcanti que, imitando Lula à perfeição ¿ papel que certamente desempenhará na campanha eleitoral ¿ levou a platéia de tucanos ao delírio.

O próprio FHC já cometera um ¿ato falho¿ durante um jantar com a cúpula tucana no ano passado, ¿ato falho¿ esse que, na ocasião, muitos consideraram que poderia ser mais do que isso. Ao falar sobre presidencialismo nos Estados Unidos, Fernando Henrique elogiou o ex-presidente Bill Clinton, sua carreira, que considera brilhante, e lamentou: ¿O presidente nos Estados Unidos, depois de ser presidente duas vezes, não pode ser mais nada. Aqui no Brasil não¿. De lá para cá, embora a especulação continue viva, fica cada vez mais claro que ele não será o candidato, mas o grande eleitor do PSDB, para o bem e para o mal.

Se havia alguma dúvida de que a campanha se travará entre Fernando Henrique e Lula, ela se dissipou ontem. Quatro presidenciáveis do PSDB estavam no palco da convenção ¿ o novo presidente Tasso Jereissati; o governador de Minas Aécio Neves; o governador paulista Geraldo Alckmin e o prefeito paulistano José Serra ¿ mas foi Fernando Henrique quem dominou a cena e monopolizou os ataques dos governistas.

Há uma tese sendo debatida entre os tucanos de que o prefeito José Serra, mesmo sendo o único a aparecer como possível vencedor de uma disputa com Lula, por ter sido ministro de Fernando Henrique, representaria o passado do PSDB e seria mais exposto a comparações entre os dois governos. Ao passo que Alckmin, até mesmo por ser um completo desconhecido fora de São Paulo, representaria algo novo para o eleitorado, o futuro do PSDB e teria condições de crescer junto ao eleitorado.

Desde ontem ele já não tem esse argumento na sua disputa com Serra ¿ tanto Tasso quanto Aécio são forças políticas ponderáveis e aliados na tentativa de tirar o peso acachapante que os paulistas têm dentro do partido, mas não disputam para valer a indicação. Ontem ficou claro que a base da campanha petista será a comparação com os oito anos de Fernando Henrique, seja qual for o candidato. O que já aconteceu no depoimento do ministro Antonio Palocci na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado dias atrás.

Mesmo tendo todo o cuidado para não ofender os tucanos, que, afinal, o estavam tratando com toda a consideração, Palocci desfiou números da economia que, nas mãos de um governista mais empedernido, trariam embutidos críticas às gestões anteriores. Palocci, ao contrário, falou em ¿processo¿, reconhecendo a importância dos passos que foram dados anteriormente. Não só irritou Lula com esse comportamento ¿politicamente correto¿, como não refletia as tintas de guerra com que serão feitos os programas petistas.

O ¿processo¿ da política econômica a que se referiu Palocci se transformará em criação original do petismo. O presidente ¿entendeu¿ a situação de Palocci, que tinha que agradar aos oposicionistas, mas já há petistas prevendo que os tucanos vão usar nos programas eleitorais os elogios de Palocci ao Plano Real e à Lei de Responsabilidade Fiscal, para quebrar a unidade das críticas.

E os petistas não terão a compensação de também usar os elogios dos senadores tucanos à política econômica de Lula, pois ela será, ao mesmo tempo, o trunfo e o calcanhar de Aquiles da campanha pela reeleição. (Continua amanhã)