Título: Os cidadãos
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 20/11/2005, Economia, p. 32

Passou em silêncio, como sempre, o aniversário da República, mesmo num governo que abusou, por três anos, da palavra "republicano". Ela foi usada pelo PT como a síntese de todas as virtudes públicas que supostamente o partido encarnaria. Fatos reais revelaram o avesso. República não é sinônimo de democracia ou decência ou inclusão. Mas sempre alimentará o sonho de um país de cidadãos.

Há monarquias tão democráticas quanto repúblicas, como a espanhola, e repúblicas restringindo liberdades fundamentais. Certas monarquias parecem existir apenas para fornecer matéria-prima para os tablóides, como a inglesa dos Windsor, e até a mais amada das repúblicas, a francesa, encontra os muros das novas bastilhas. Já a nossa República sempre foi diferente, e por isso o 15 de novembro sempre será apenas um feriado. É preciso voltar aos nossos pensadores, como José Murilo de Carvalho, para se entender por que o povo, que assistiu "bestializado" à proclamação da República, nunca a viu como o início da construção de um país de cidadãos. O olhar brasileiro para o passado é descuidado. Vai ver, é porque tão entretidos temos estado com as crises presentes, que nem há espaço para reflexões e olhares pregressos. O fato é que, no último 15 de novembro, a república modelo de todas as outras estava decretando toque de recolher, e aqui o noticiário preferiu comemorar o aniversário da Avenida Central.

Linda e parisiense, moderna e chic, a nova avenida nasceu da prancheta de Pereira Passos, na mesma modernização autoritária que levou à campanha da vacina obrigatória de Oswaldo Cruz. A imprensa divulgou, no centenário, imagem do dia da inauguração da agora chamada Avenida Rio Branco: uma avenida cheia de homens de chapéu e mulheres de longo. Um ano antes, em 1904, as ruas do Rio, centrais e periféricas, estavam lotadas de rebeldes dispostos a produzir uma cena como a da Paris de hoje. O Rio de 101 anos atrás tinha algo a ver com a Paris dos dias de hoje: a revolta da vacina deixou um saldo de 30 mortos, 945 presos, 461 deportados e um sem-número de bondes queimados, estabelecimentos comerciais quebrados, postes de iluminação pública derrubados.

A nossa revolta da vacina e a rebelião francesa das periferias de Paris guardam distâncias oceânicas e um mesmo mistério: por que certas fagulhas explodem? Por que explodem em determinado momento, nem antes, nem depois? A nossa fagulha daquela época tinha a ver com as escolhas da República. Ela nasceu com defeitos originais: foi proclamada no auge da popularidade da monarquia, não ampliou os poderes democráticos, não incluiu de início novos eleitores ao processo de escolha. Foi um "golpe de caserna", disse o então embaixador francês, segundo relato de José Murilo de Carvalho. Onze meses antes, no dia 2 de dezembro de 1888, o aniversário de Pedro II produziu uma inequívoca demonstração da popularidade da monarquia. Segundo Raul Pompéia, o Paço foi alegremente invadido "por uma turba imensa de populares, homens de cor, a maior parte", para comemorar o aniversário.

Em certos aspectos, a monarquia fez coisas de que até hoje a República duvida. O americano Roderick Barman conta, no seu livro "Princesa Isabel do Brasil", que a nossa regente foi uma das apenas nove mulheres que assumiram o poder durante o século XIX. Somados os períodos em que esteve no trono, na ausência do pai, foram três anos e meio. Enfrentou um Brasil tão machista, que até hoje é a única. Jamais houve uma mulher, interinamente que fosse, no comando do governo federal. Nos governos locais, algumas; mas pelo menos uma tem feito questão de deixar claro, por gestos e palavras, que é o ectoplasma do marido.

O que há de interessante nas fagulhas que explodem é que se descobre que sempre soubemos que elas viriam. O presidente Jacques Chirac havia avisado sobre o risco nos subúrbios miseráveis de Paris. "Quando tantos jovens não vêem nada à frente a não ser desemprego, eles acabam se rebelando. Por um tempo o Estado pode lutar para impor a ordem, ou confiar nos benefícios sociais para evitar o pior. Mas até quando isso dura?" A declaração, revisitada agora, choca porque foi feita em 1995. Logo depois Chirac virou presidente. E ele nada fez para evitar o que previu.

O desemprego de jovens virou um conflito intratável. Na França o desemprego tem estado em torno de 10% há anos, e o desemprego de jovens é 23%, um dos piores da Europa. O desemprego nas áreas pobres das cidades, que eles definem pelo eufemismo de "zonas urbanas sensíveis", chega a 40%.

O que agrava a situação é a desesperança que se espalha numa sociedade incapaz de alimentar o sonho de ascensão. Se os filhos dos filhos dos imigrantes ainda são tratados como estranhos, o conflito se instala inevitavelmente. A sociedade francesa, que sempre se orgulhou do seu liberdade-igualdade-fraternidade, não tem um rosto negro sequer, ou moreno que seja, na Assembléia Nacional.

No Brasil, a revolta da vacina, que estourou no quinto ano da República, não ocorreu por crise econômica. A recessão de Campos Salles já havia acabado e o país estava em plena recuperação. A reação à vacina era pretexto. O que houve mesmo foi a seqüência de sonhos de inclusão frustrados. A abolição não incluiu os negros no mercado assalariado, a República decepcionou os que acreditaram na democratização do poder. Na primeira eleição votaram 2% dos brasileiros. São os sonhos perdidos que explodem, de repente, diante de uma fagulha. Na França, o detonador foi a tragédia de dois jovens infelizes. No Brasil, quando o desalento virará revolta?