Título: 'Sinto que o futuro não é muito promissor'
Autor: Cristina Azevedo
Fonte: O Globo, 20/11/2005, O Mundo, p. 40

Mayada, jornalista torturada pelo regime de Saddam, fala de prisão, exílio e de seus sonhos para o futuro do Iraque

Pessoas que desapareciam de uma hora para outra, presos torturados, iraquianos reféns da violência. Esse poderia ser um retrato do Iraque hoje, mas é de 1999, quando a jornalista Mayada al-Askari fugiu do país. Mayada vem de uma família sunita influente. Conheceu Saddam Hussein, mas caiu em desgraça quando parou de escrever por não concordar com o regime. Foi presa e torturada. Mesmo agora, após a queda de Saddam, seu exílio está longe do fim. " O sonho de o Iraque se tornar de novo o país da minha juventude pode nunca se concretizar", diz, ao GLOBO, a jornalista que teve sua história contada pela escritora Jean P. Sasson em "Mayada, filha do Iraque" (Editora Best Seller).

Como está sua vida agora, seis anos após fugir do Iraque?

MAYADA AL-ASKARI: Vivo e trabalho em Dubai, onde faço um programa para o canal de TV iraquiano al-Fayhaa. Ele mostra a vida hoje no Iraque e tem entrevistas com pessoas que foram brutalizadas pelo antigo regime, famílias que perderam filhos para a máquina de execução do Estado.

Você descobriu o que aconteceu com suas companheiras de cela em Baladiyat?

MAYADA: Infelizmente não consegui encontrá-las. É difícil dizer isso, mas provavelmente não sobreviveram. O diretor do meu programa, que tem casa em Bagdá perto da prisão de Baladiyat, contou-me que a penitenciária foi esvaziada antes de americanos e britânicos invadirem o Iraque. Ninguém sabe para onde elas foram levadas, se foram enterradas em covas coletivas, se foram soltas. Não tenho idéia do destino das mulheres da cela 52.

Qual foi o pior momento depois que você foi presa?

MAYADA: Cada momento foi um inferno. Meu corpo doía diante do horror. Eu me preocupava com as pessoas que estavam fora da prisão, porque não sabiam o que tinha acontecido comigo. Mas se tivesse que escolher um momento, seria depois que fui libertada, quando tive que deixar minha filha no Iraque, enquanto fugia com meu filho para a Jordânia. Esse é o pior pesadelo de uma mãe.

E como foi o reencontro com sua filha (após pagar US$25 mil a um policial iraquiano para deixá-la partir)?

MAYADA: Fay chegou a Amã (Jordânia) às 2h45m da madrugada de 23 de janeiro de 2000. Lembro que estava extremamente frio naquela noite e começava a nevar. Chorei e ri ao mesmo tempo. Eu sabia que dias difíceis nos esperavam, porque não tínhamos dinheiro para sobreviver, mas eu estava fora da prisão, Fay estava fora do Iraque e nós três estávamos juntos novamente.

No fim da guerra, você tinha uma grande expectativa em relação ao futuro do Iraque. Como analisa a situação agora?

MAYADA: O Iraque foi governado com mão-de-ferro desde 1968 e as pessoas tinham medo de criticar o governo. Enfrentamos o horror de duas guerras e o embargo, que deixaram o país devastado. A menos que alguém fosse membro do Partido Baath, não lhe seria permitida uma vida normal, como entrar para uma universidade. Pior, poderia desaparecer da face da Terra. Testemunhei coisas horríveis. Em 9 de abril de 2003, o Iraque despertou sem governo, sem regras, uma situação completamente sem controle. Logo se tornou claro que o Exército americano não fora treinado para manter a paz. Fiquei triste e magoada ao ver que os americanos não tinham um plano para governar. Acho que o Iraque seria um lugar muito diferente hoje se alguém estivesse no controle quando Saddam foi derrotado.

Por que tantos abusos foram cometidos pelo regime de Saddam sem que alguém tentasse detê-lo?

MAYADA: O Iraque estava um caos, com a monarquia derrubada e governos fracos. Saddam chegou ao poder e falava como um patriota. Quando chegou a se revelar um monstro, já tinha as Forças Armadas sob o seu controle. Os iraquianos eram fracos para derrubá-lo, não tinham chance. Algumas almas bravas tentaram, mas pagaram com a vida.

Como torturada, o que sentiu ao ver as fotos de tortura em Abu Ghraib (praticada por soldados americanos)?

MAYADA: Fiquei muito revoltada e ainda estou. Não podia acreditar, mas há muitas pessoas que conheci que foram torturadas após a guerra. O sogro de meu primo teve um irmão morto em Abu Ghraib. Meu patrão em Amã foi preso em Bagdá por americanos em 2003. Ele ficou vendado e algemado por duas semanas. Recebia água só uma vez por dia, e um único pedaço de bolo. O irmão foi preso com ele, teve o braço quebrado e ficou sem o medicamento para diabetes. Sua família subornou funcionários para que ele fosse solto. E por que foi preso? Porque procuravam em Asdamiya um secretário de Qusay Hussein, filho de Saddam. A casa do meu patrão era perto da casa desse homem.

No governo de Saddam, as iraquianas tinham mais liberdade do que em muitos países árabes. Você acha que elas podem perder direitos se o país for controlado por xiitas?

MAYADA: Espero que não tenham perdido a liberdade. No entanto, perderam uma certa igualdade de chances que era garantida pelo regime anterior. É uma grande pena.

Você acredita no futuro do Iraque?

MAYADA: Quero acreditar que tudo vai melhorar. Mas sinto que o futuro não é muito promissor. O sonho de o Iraque se tornar de novo o país da minha juventude pode nunca se concretizar. Não pode imaginar como isso é difícil para mim. Um dos meus avós morreu defendendo o Iraque.