Título: Chile abre porões de Pinochet
Autor: Janaína Figueiredo
Fonte: O Globo, 11/11/2004, O Mundo, p. 39

Opresidente do Chile, o socialista Ricardo Lagos, recebeu ontem um documento histórico elaborado pela Comissão Nacional sobre a Prisão Política e a Tortura, criada pelo Poder Executivo há um ano, no qual cerca de 35 mil pessoas revelam como, quando e onde foram torturadas na repressão desencadeada após o golpe de Estado de setembro de 1973, comandado pelo general Augusto Pinochet. Pela primeira vez na História do Chile, país que foi cenário de uma das ditaduras mais cruéis da América Latina (1973-1990), o governo reconheceu a figura do ex-torturado político. No mês que vem, Lagos deverá enviar ao Congresso um projeto para compensar ex-presos políticos que tenham sido torturados pelos militares.

¿ Temos de estar orgulhosos. Quantos países se atreveram a olhar em profundidade sua História, quantos países se atreveram a chegar tão longe? O Chile se atreve porque é um país sólido e estável ¿ disse Lagos.

O documento foi recebido com grande expectativa de organizações de defesa dos direitos humanos e, sobretudo, de vítimas da tortura.

¿ Durante 31 anos não tivemos rosto, nem nome, nem história ¿ disse ao GLOBO a vice-presidente da Associação de Familiares de Presos Desaparecidos (AFDD, na sigla em espanhol), Mireya Garcia, por telefone de Santiago.

Mireya é uma das cerca de 35 mil pessoas que deram depoimento à comissão:

¿ Estive 300 dias detida no sul do Chile, em 1973 e 1974. Fui torturada física e psicologicamente. O mais terrível foi estar presa junto ao meu pai.

Depois de ser libertada, Mireya rumou para o exílio no México.

¿ Eu tinha apenas 17 anos e essa experiência me marcou para sempre ¿ afirmou a vice-presidente da AFDD, que diz ter sido torturada por militares da Marinha, setor das Forças Armadas que nega participação na repressão.

A comissão começou a trabalhar em 11 de novembro de 2003. Seus integrantes visitaram 110 cidades para entrevistar ex-torturados. Segundo informações da imprensa local, o documento, que só será divulgado pelo governo nos primeiros dias de dezembro, enumera os principais centros clandestinos de tortura que existiam no país e que até hoje eram desconhecidos pelos chilenos. E responsabiliza todos os setores militares, com destaque para o Exército e a Marinha.

Ex-torturados podem ser 70 mil

No relatório, a comissão descreve os tipos de tortura. De acordo com a investigação, nos primeiros meses após o golpe os métodos mais utilizados eram surras, simulação de fuzilamento, choque elétrico, queimaduras com cigarros, extração de unhas, abusos sexuais e tentativa de afogamento em água, óleo e petróleo.

¿ Esperamos que o relatório sirva para que o país avance na busca da reconciliação ¿ disse a vice-presidente da comissão, Maria Luisa Sepúlveda.

Na visão da escritora Patrícia Verdugo, autora do livro ¿A Caravana da Morte¿ ¿ peça chave no processo contra Pinochet ¿ muitos ex-presos políticos ainda não tiveram coragem de falar sobre as torturas sofridas.

¿ Eu diria que existem, pelo menos, 70 mil ex-torturados no Chile, se é que não são mais. Esta era uma dívida pendente. Estamos abrindo uma caixa cheia de pesadelos ¿ afirmou Patrícia, cujo pai foi assassinado durante a ditadura de Pinochet e para quem ¿a reparação aos ex-torturados deve estar à altura das circunstâncias¿.

O reconhecimento da tortura aplicada pelos militares teve forte impacto na sociedade chilena.

¿ Este é um momento muito especial para os chilenos. Estamos amadurecendo e consolidando a idéia de que nunca mais os direitos humanos poderão ser violados em nosso país ¿ assegurou Guillermo Hollzman, professor da Universidade do Chile.