Título: NO CARANDIRU, JULGAMENTO DE BELEZA E VERSOS
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 27/11/2005, O País, p. 19

Concurso para escolher Miss Presidiária reuniu mais de 600 detentas e foi vencido por angolana de 23 anos

Parou/ Respirou/ Virou/ Conta até dois/ Olha para os jurados/ Paradinha/ Respirou/ Olha a postura/ Cresceu/ Conta até três/Saiu

São 11h de quinta-feira passada. Numa sala da Penitenciária Feminina da Capital, unidade do antigo complexo Carandiru de São Paulo, o agente de modelos César Augusto da Silva ensaia cada uma das dez finalistas ao II Concurso de Miss Presidiária 2005, marcado para as 16h. Para chegar até ali elas já derrotaram mais de 600 outras candidatas. Primeiro, em eleições locais, nos próprios pavilhões que ocupam. Depois, em eleição mais ampla, para representar o presídio da cidade ou da região onde cumprem pena. Agora falta só trocar o uniforme de presidiária, vestir o de gala e desfilar perante vinte jurados que separam cada uma de seu sonho maior: a coroa de miss.

Iniciativa pioneira da Secretaria de Administração Penitenciária paulista, o concurso que mobiliza toda a população carcerária feminina do estado tem nome politicamente correto, II Concurso Reescrevendo o Futuro. É dividido em quatro quesitos (prosa, poesia, simpatia e beleza), com dez finalistas para cada modalidade, e visa a aproximar as reeducandas ¿ palavra do novo léxico prisional ¿ de valores da comunidade em geral.

Tudo sem dinheiro público

E não é que, uma vez desbastado o linguajar resgate-da-cidadania, a iniciativa é um sucesso, em todas as suas facetas? Para começar, e antes que se levantem restrições quanto ao custo de algo tão marginal na lista das prioridades nacionais, o evento se realiza à margem de verba pública. Dos 40 pares de meias-calça Trifil usados pelas candidatas ao poderoso palco com passarela coberta montado pelo cantor Alexandre Pires, quase tudo é obtido gratuitamente. Nenhum dos artistas que se apresentam durante o evento cobra cachê e ainda é permitido dar estocadas nas autoridades presentes. Leci Brandão, há décadas a cantora mais querida das presidiárias, dirigiu-se ao mar de mulheres de calça amarela e camiseta branca que se aglomeravam no pátio com uma referência às próximas eleições: "Vocês não votam, mas os familiares de vocês votam".

O concurso de prosa e verso, acoplado ao de miss, pode não ter sido o motivo que levou o ¿New York Times¿ e a tevê alemã ZDF a despacharem profissionais ao Carandiru na quinta-feira, mas para as presidiárias ele é igualmente empolgante. Quando a detenta Vera Lúcia Oliveira começou a recitar o seu ¿Pai Nosso dos Encarcerados¿ (¿Pai nosso que estais no céu/ Olhai por nós que somos réus/ Venha a nós a nossa liberdade/...¿) o arrepio foi geral, embora ela fosse candidata por Ribeirão Preto. Vera Lúcia dividiu o primeiro lugar com a prata da casa, a loirinha Flavia Dias, única a declamar suas seis estrofes de memória, sem ler.

¿ Memorizo tudo rapidamente e só gosto de fazer poesia sobre coisas reais. Um pouco como músico que faz rap ¿ explica. Flavia tem 35 anos, é viúva duas vezes, mãe de quatro filhos, uma letra E japonesa tatuada no braço e uma pena de 42 anos a cumprir. No prontuário constam seis assaltos. Completou o 1º ano do ensino médio na prisão e tornou-se costureira certificada. ¿ Agora tenho um ofício e quando sair daqui já não preciso dizer que não sei fazer nada.

Na modalidade verso, o impacto da vencedora foi ainda maior. Oitava candidata a se apresentar, o furacão Karla Meneses, condenada por seqüestro a 60 anos com pena reduzida para 45, soltou o verbo. A cada estocada de seu texto corrido, uivos de "Já ganhou". Mulherão imponente e sensual, sabia com exatidão o impacto que provocava. Na composição que lhe valeu o primeiro prêmio (R$350) denunciou tanto a "hipocrisia da ressocialização.... que hoje nada mais é do que uma bandeira política para arrecadar votos" quanto as falhas do Judiciário e do Legislativo.

Para o secretário de Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, maior autoridade a bordo, enquanto todas as presas estivessem ali, tudo bem. O risco da iniciativa não estava no que declamavam as concorrentes, mas na operação de translado das finalistas de outras penitenciárias e sua inserção relâmpago no Carandiru. Para evitar surpresas, alocou-se um guarda para cada grupo de quatro presas durante o evento.

¿Vocês não podem esquecer da paradinha para os jurados", repetia o instrutor César Augusto, na sala de ensaio improvisada. Com carteiras escolares servindo de baliza, as candidatas a miss, ainda de rolos na cabeça e unhas por fazer, desfilavam nessa passarela virtual. Pendurados em cabides e escondidos em capas da Traje Marry Rigor ou Valéria Noivas, estavam os vestidos de fada para quem só veste uniforme há anos. Nas três salas adjacentes que funcionavam como salão de beleza e maquilagem, por pouco não ocorre uma catástrofe: a rede elétrica simplesmente não agüentou as dezenas de secadores de cabelo em funcionamento simultâneo, e a luz pifou. Ninguém duvida de um motim, caso não tivesse sido restabelecida a tempo.

¿Postura, mão para trás faz crescer, quanto mais acima das nádegas, mais reta você entra. Lembrem-se de quatro coisas: postura, alinhamento dos pés, variação no olhar e sorriso", prossegue, enquanto as candidatas confraternizam no medo.

¿ Há nove anos só ando de tênis e chinelo, como é que vou me sair com um salto de 17 cm? Dá medo ¿ diz uma.

¿ Sonhei que virei o pé, que ia cair ¿ diz outra.

Trocam figurinhas, aliviam a ansiedade e estremecem ao se imaginar frente a frente com alguns dos jurados mais idolatrados: o atacante Grafite, o apresentador Raul Gil, a eterna musa Rita Cadillac.

É em meio a esse tititi que entra na sala uma negra escultural de 1,79m, bandana na cabeça e boca carnuda. As que ali estavam emudecem. A negra esguia passa a sala toda no radar de seu olhar aveludado e felino, dirige-se a César e se posiciona para ensaiar. Aos primeiros passos da pantera fica claro que há pouco a aprender. Angélica Mazua Nsangu, angolana, 23 anos, que desembarcou no aeroporto de Cumbica há quatro meses traficando cocaína no tênis, nasceu para a passarela. E derrotou as concorrentes por antecipação, da mesma forma como atletas de ponta derrotam adversários intimidando-os psicologicamente antes da competição.

De fato, quando pisou na passarela num longo esvoaçante cor-de-rosa, com cauda verde, ouviu-se um ronco do público e um arfar entre os jurados. A contraprova do desfile de maiô foi quase desnecessária. Com a sagração de Angélica, o Carandiru tremeu como quadra de escola de samba. Exceto por um grupo de presas evangélicas, que permaneceu nos pavilhões em vigília, a festança só acabou perto da meia-noite.

¿ A ressaca foi semelhante à que ocorre depois de uma festa de casamento ¿ conta a diretora da Penitenciária Feminina da Capital e anfitriã da edição 2005 do concurso, Maria da Penha Rizola Dias. ¿ Fala-se mal dos outros e trocam-se fuxicos sobre a roupa de cada uma

Indisciplina é mais freqüente

A doutora Penha conhece a fundo as peculiaridades do comportamento prisional feminino. Trabalha no sistema há 37 anos, desde os tempos em que cabia à Igreja a guarda de mulheres acusadas de delito. Em São Paulo e em Porto Alegre, por exemplo, as infratoras ficaram sob a guarda da Congregação Bom Pastor até 1978.

¿ A palavra rebelião tem conotação sonora e alimenta o imaginário mas, no caso de presídios femininos, o mais freqüente são movimentos indisciplinares, que se caracterizam pela ausência de uma reivindicação clara. A mulher, quando presa, é mais ansiosa do que o homem, quer ver os filhos, tem medo de morrer na prisão. Tem necessidade enorme de falar, o que nos ajuda a antecipar o perigo, a prever. A última rebelião que tivemos foi em agosto do ano passado ¿ conta.

Segundo ela, que comanda o Carandiru feminino há 12 anos, mesmo a detenta que se orgulha de um currículo "eu mato", "eu executo", acaba fazendo o que seu homem do crime comanda.

¿ Elas ostentam crueldade e frieza para se mostrarem para o macho ¿ diz a doutora Penha.

Mas jamais iniciariam uma rebelião em dia de visita, como os homens. Do total de suas quase 700 internas, 540 trabalham, o que torna a unidade exemplar para padrões brasileiros.

¿ Há presas que sustentam a família com o que ganham aqui, e já ouvi alguém dizer que não quer sair daqui de medo do desemprego lá fora. É o fim do mundo ouvir isso ¿ conclui.

Um ano atrás, quem levou faixa e coroa de primeira Miss Presidiária de São Paulo foi Fernanda de Jesus. Após cumprir pena de três anos por posse de cocaína, Fernanda foi libertada, conseguiu prolongar a notoriedade que o título lhe conferiu e continua sendo lembrada como ícone pelas ex-colegas de cela. Semana passada, um exemplar já gasto da revista ¿Viva¿, com foto da Miss 2004 na capa, era repassado entre as candidatas de 2005. A reportagem descreve uma ida de Fernanda à Daslu, o palacete-templo do consumo erguido pertinho da Favela Funchal onde a jovem cresceu. Comentário da ex-presidiária ao final do giro: "Achei a Daslu muito parecida com a cadeia. Tem seguranças que vigiam tudo, encaram feio e falam nos radinhos o tempo todo. A diferença é que lá só tem loira de cabelo liso. Eu era a única pretinha".