Título: `Pinochet não é mais relevante¿
Autor: Janaina Figueiredo
Fonte: O Globo, 27/11/2005, O Mundo, p. 41
Presidente minimiza importância de ex-ditador, comemora avanços e admite desigualdade
Ele foi o primeiro socialista a se eleger presidente depois da redemocratização do Chile, em 1990. Passados quase seis anos no palácio de La Moneda, Ricardo Lagos é considerado um dos chefes de Estado mais bem-sucedidos da América Latina, com 60% de apoio popular. Seu governo conseguiu melhorar os indicadores sociais do país. Um exemplo é a redução da taxa de pobreza de 40% para 18%. Satisfeito, mas sabendo que não alcançou todos os objetivos estabelecidos em março de 2000, quando assumiu o poder, Lagos se prepara para entregar a Presidência possivelmente à também socialista Michelle Bachelet, sua ex-ministra da Defesa e da Saúde e favorita nas eleições de 11 de dezembro. Em entrevista ao GLOBO, durante uma visita à cidade de Concepción, no Sul do Chile, ele fez um balanço de seu governo, defendeu a importância de dar continuidade ao projeto de país iniciado por ele, minimizou a importância do ex-ditador Augusto Pinochet no atual contexto político e questionou a falta de avanços no Mercosul, bem como a tão anunciada incorporação da Venezuela ao bloco. A bordo do modesto avião presidencial, falou também da prisão no Chile do ex-presidente peruano Alberto Fujimori: ¿Minha sensação é de que Pinochet deixou de ser um ator relevante na política chilena.¿ Lagos enumerou os resultados obtidos por seu governo sem deixar de reconhecer, e com ênfase, que a desigualdade social continua sendo um problema grave no Chile. ¿A questão fundamental é a educação, e hoje, em cada dez estudantes universitários, sete pertencem à primeira geração de universitários em suas famílias¿, disse. Durante seu governo, a América Latina presenciou sucessivas crises políticas, que contrastaram com a sólida estabilidade chilena. ¿Pelo menos tive uma vantagem, conheci muitos presidentes e fiz muitos amigos¿, brincou.
O ex-ditador Augusto Pinochet fez 90 anos (na última sexta-feira), com uma nova ordem de detenção domiciliar. O senhor acredita que essa será a maior condenação que o ex-ditador receberá em vida?LAGOS: Acho que, em relação a Pinochet, já houve um julgamento majoritário por parte dos chilenos. Em 1990, quando começou esta longa transição chilena, em número de pessoas, essa condenação (social) era muito menor.O senhor considera que Pinochet já foi julgado pelos chilenos?LAGOS: Hoje esta questão está nas mãos dos tribunais. O mais importante é que antes estas questões (os processos contra Pinochet) produziam uma grande comoção no Chile e hoje você vê que não rendem sequer grandes manchetes. Hoje o assunto mais importante é a briga entre Bachelet e Piñera (candidato presidencial de direita), o resto já é parte de nossa História, para o bem ou para o mal. Claro que passarão muitos anos e algumas pessoas estarão de um lado e outras de outro, mas minha sensação é de que Pinochet deixou de ser um ator relevante na política chilena.O velho fantasma de Pinochet não existe mais?LAGOS: Acabou.No que diz respeito à defesa dos direitos humanos, assunto sensível para muitos chilenos, o senhor se sente satisfeito com medidas adotadas durante sua gestão?LAGOS: Estou satisfeito, porque em matéria de direitos humanos foi elaborado um relatório sobre presos políticos desaparecidos, foram aprovadas várias medidas de compensação, iniciativas para o retorno de exilados. Restava também um grupo muito grande, de presos políticos torturados e nós nos atrevemos a tratar o assunto. Obtivemos o depoimento de 35 mil pessoas, das quais cerca de 29 mil admitiram terem sido torturadas. Enviamos esse relatório sobre a tortura a cada uma dessas 29 mil pessoas agradecendo sua colaboração. A quantidade de pessoas que me pediram que assinasse a cópia do relatório (silêncio)... Outros se emocionaram e me disseram que esse relatório é a única coisa que os mantém vivos. Eles sentem que o Estado os escutou e agradecem esse reconhecimento, não querem dinheiro. Isso é forte. Mas ainda resta muito a fazer, muitos desaparecidos que não sabemos onde estão. Esta é uma questão na qual nunca se vira a página.Dentro de duas semanas, os chilenos elegerão um novo presidente. Pesquisas indicam que a socialista Michelle Bachelet ficará em primeiro lugar, com pouco mais de 40% dos votos...LAGOS: O ideal para todo governo é ser sucedido por um candidato de seu partido. O senhor tem 60% de popularidade. Por que a candidata de seu partido não conseguiu alcançar o mesmo nível de apoio popular?LAGOS: As pessoas aprovam minha gestão, mas não sei se 60% dos chilenos voltariam a votar em mim. A questão seria saber, se eu fosse candidato teria 60%? Não sei, as pessoas podem querer uma alternativa mais de direita, ou de esquerda, não sei. Um amigo me disse recentemente que vai me apoiar até o último dia de gestão e eu fiquei contente, até que ele me explicou o porquê. Porque não existe reeleição (risos). Hoje (quinta-feira passada), um rapaz me disse que me esperava de volta em 2010, mas essa questão não é tão simples assim.Podemos esperá-lo?LAGOS: Antes me perguntavam se seria senador vitalício (antes da reforma constitucional aprovada este ano, todos os ex-presidentes chilenos passavam a ser senadores vitalícios) e eu nunca respondi. Por enquanto me chamaram para ser presidente do Clube de Madri, para ser presidente dos ex-presidentes. Bachelet vem caindo nas pesquisas...LAGOS: Na campanha, à medida que chega a hora da eleição as posições vão se acomodando. A Concertação (coalizão de governo entre socialistas e democrata-cristãos) chegou ao nível histórico que sempre teve. O governo está preocupado com a queda de popularidade de Bachelet?LAGOS: Preocupar, bem, nós queremos que seja eleita, claro. Ainda existe uma diferença muito grande para que a eleição possa estar em perigo. Mas toda eleição termina quando são contados os votos. Se haverá segundo turno, bom, o segundo turno será outra eleição, de características diferentes.No último debate presidencial, semana passada, os quatro candidatos questionaram a situação social do país, inclusive Bachelet. Como o senhor recebeu essas críticas?LAGOS: A primeira coisa que gostaria de dizer é que fico feliz ao ver que essa questão está sendo discutida, porque ela sempre foi uma bandeira de nosso partido e a direita nunca a aceitou. Para eles bastava crescer que o mercado faria o resto. Eu sempre disse que era necessário crescer, mas que sem políticas sociais estaríamos liquidados. Agora, claro, uma questão são os recursos monetários e outra os recursos reais, como saúde e educação. Não estou dizendo que estamos bem, este é um longo caminho. Mas a questão fundamental é a educação e hoje de dez estudantes universitários sete pertencem à primeira geração de universitários em suas famílias Você poderia me dizer: mas presidente, entre os 20% mais ricos 70% estão na universidade, e entre os 20% mais pobres apenas 11% estudam. E eu diria que a desigualdade ainda é grande, mas há dez anos era 45% contra apenas 4%. Desde que o senhor chegou ao governo, o continente foi cenário de diversas crises políticas que derrubaram governos na Argentina, Venezuela, Bolívia e Equador. Como foi governar em meio a tantas turbulências na região?LAGOS: Bom, pelo menos tive uma vantagem, conheci muitos presidentes e fiz muitos amigos (sorrisos).Na Argentina vários...LAGOS: Sim, claro, na Bolívia também. Tive boas relações com (Fernando) De la Rúa, (Eduardo) Duhalde e (Néstor) Kirchner. A mesma coisa posso dizer em relação à Bolívia e ao Peru, com a diferença de que em ambos os casos existem questões do passado e resta saber o que fazer para ir resolvendo essas questões.Seu governo está preocupado com a crise atual com o Peru, relacionada com as fronteiras marítimas entre ambos países?LAGOS: Não, tudo se discute através de canais diplomáticos. Mas são assuntos desagradáveis que estão latentes.Na próxima cúpula do Mercosul, que será realizada no início de dezembro, deve ser anunciada a entrada da Venezuela como membro pleno do bloco regional. (O Chile associou-se ao Mercosul em 1996, mas ainda não é membro pleno)...RICARDO LAGOS: Gostaria de saber como isso será feito. Quando eu mencionei essa possibilidade me disseram que aqui (no Mercosul) existe uma tarifa externa comum e que aderir a esta tarifa é condição para ser membro pleno. Por enquanto a Venezuela é parte da Comunidade Andina, bloco que tem suas próprias normas tarifárias. Se ser membro pleno significa ter a tarifa externa comum, cada país deverá se adaptar a essa circunstância.Como o senhor vê atualmente o Mercosul?LAGOS: Muitas vezes tenho a sensação de que os países do Mercosul dizem: bom, vamos lá, vamos saltar um metro. Alguns países, de fato, saltam um metro, mas outros não são capazes de superar os 50cm. Depois disso, a meta seguinte passa a ser saltar 1,20 metro (o presidente encolhe os ombros, mostrando sua perplexidade em relação ao funcionamento do bloco). Tenho uma história interessante sobre os ônibus de Santiago. Fizemos uma licitação e venceu a Volvo do Brasil, que precisava enviar os ônibus por terra ao Chile. Bom, tive que falar com Kirchner para que os ônibus pudessem passar pela Argentina. De que integração estamos falando? Falta vontade política?LAGOS: Fazemos estradas espetaculares, mas ainda não conseguimos ter um guia de trânsito comum, um certificado fitossanitário comum. Temos de adotar medidas práticas. Falta coordenação entre os presidentes?LAGOS: Essa é minha impressão, falta coordenação ou vontade política. Se a integração energética, por exemplo, for condicionada, sei lá, à chegada de Fujimori ao Chile, bem, aí a coisa não funciona.Falando no ex-presidente peruano, o que passou por sua cabeça quando foi informado sobre a presença de Alberto Fujimori no Chile?LAGOS: Sinceramente, não conseguia acreditar. Era domingo, estava almoçando com a família. Ligaram-me do palácio presidencial e um porta-voz do governo me perguntou se eu sabia que Fujimori estava no Chile. ¿Fujimori no Chile?¿, perguntei. Mas se ele tem ordem de captura! Bom, disseram-me que estava hospedado no hotel Marriott e eu realmente não conseguia acreditar nisso. Tivemos de atuar rapidamente para que o caso fosse tratado pela Justiça.O senhor acredita que ele será extraditado?LAGOS: (silêncio) Acredito que esta é uma questão que depende do Judiciário, o poder político não interfere de forma alguma.