Título: PODER FEMININO COMO CAMINHO PARA A PAZ
Autor: Flávio Henrique Lino
Fonte: O Globo, 27/11/2005, O Mundo, p. 43

Países devastados por guerras abrem cada vez mais espaço para participação das mulheres na política

¿A senhora já viu uma galinha cantar?¿ A pergunta, feita por um eleitor a uma candidata ao Parlamento de Uganda, resume as atitudes prevalentes em muitos lugares do mundo em relação à chegada de mulheres ao poder. Três semanas atrás, no entanto, uma avó de 67 anos bateu nas urnas na Libéria um ex-astro de futebol de 39, num embate em que a fragilidade da velhice feminina de Ellen Johnson-Sirleaf derrotou por 59,4% a 40,6% a virilidade da juventude masculina de George Weah.

Ao comentar sua vitória, ela deu a chave do que pode ser a razão de seu sucesso eleitoral num país devastado por 14 anos de guerra civil que deixaram 250 mil mortos e um milhão de refugiados, o equivalente a um terço da população liberiana.

¿ Vou trazer um pouco de sensibilidade materna para a Presidência ¿ definiu Johnson-Sirleaf, uma economista com formação pela Universidade de Harvard, nos EUA.

Tal como os liberianos, que acabam de eleger a primeira mulher presidente de um país africano, alguns outros povos têm recorrido a essa sensibilidade para reconstruir suas vidas estilhaçadas por conflitos sangrentos. Em Ruanda, transformada num gigantesco campo de morte em 1994, quando hutus radicais massacraram cerca de 800 mil tutsis e hutus moderados, 49% das cadeiras no Parlamento são atualmente ocupadas por mulheres ¿ o maior percentual do mundo, cuja média é 16,1%. No Iraque, 86 de 273 deputados são mulheres, perfazendo 31,5% dos parlamentares (acima da quota de 25% garantida à representação feminina no Parlamento), enquanto no Timor Leste, elas ocupam 25% dos assentos.

¿ As mulheres têm maior probabilidade que os homens de manter o diálogo quando há dificuldades de entendimento ¿ disse ao GLOBO, de Washington, a pesquisadora Anjalina Sen, da Liga Internacional de Mulheres pela Paz e a Liberdade. ¿ Há um caso de conflito que estudamos entre Armênia e Azerbaijão em que foram elas que romperam um impasse, dizendo: ¿Se não conseguirmos negociar isso, são nossos filhos que vão morrer.¿ Elas sabem que têm de encontrar um termo de acordo porque carregam o fardo maior da guerra.

Em Ruanda, as deputadas formaram o primeiro grupo suprapartidário no Parlamento, com o objetivo de discutir temas de interesse feminino. Na Libéria, em plena guerra civil, as mulheres se organizaram acima das facções políticas em luta e fizeram protestos todos os dias durante meses, arriscando suas vidas em favor da paz. No Afeganistão, devastado por três décadas de guerra, muitas deputadas põem de lado as questões tribais e religiosas que dividem a sociedade e enxergam um país unido sob os mesmos ideais.

Segundo o Fundo de Desenvolvimento para as Mulheres da ONU (Unifem), mulheres mediadoras, nos últimos anos, tiveram um papel importante para pôr fim a guerras em Angola, Bósnia e Serra Leoa, entre outros casos. O Conselho de Segurança da ONU, em 2000, aprovou a Resolução 1325 reconhecendo a importância das mulheres na construção da paz e exortando os governos a tomarem medidas para aumentar a participação delas em mecanismos que favoreçam esse papel.

¿ Muitas mulheres têm experiência de mediação de conflitos em nível de família e comunidade e podem contribuir construindo confiança e uma cultura de paz que atravesse as linhas divisórias artificiais criadas por religiões, tribalismo e outros fatores ¿ disse, de Abuja, na Nigéria, Florence Butegwa, diretora do Unifem na África Ocidental, onde se situa a Libéria.

E ela ressalta que há outras formas além da mediação formal em que as mulheres podem ajudar a garantir a paz.

¿ Um dos maiores problemas hoje é a pobreza, a exclusão. Se os governos tiverem programas para que as mulheres possam realizar seu potencial, elas poderão providenciar o sustento de seus filhos, removendo uma das principais causas de conflitos.

A primeira-ministra Luisa Diogo, de Moçambique, segue essa linha. Incluída na lista da revista ¿Forbes¿ das cem mulheres mais poderosas do planeta em 2005, ela tem uma receita própria de sensibilidade feminina no poder. Ex-economista do Banco Mundial administrando os problemas de uma das nações mais pobres do mundo, para ela, governar o país é como o trabalho de qualquer mulher moçambicana que tem de criar uma refeição para uma grande família, muitas vezes sem ingredientes.

No entanto, Anjalina Sen acha que não se deve mistificar o papel da mulher, apesar das contribuições apontadas. Na verdade, várias mulheres já chefiaram nações em guerra: Indira Gandhi liderou a Índia na vitória sobre o Paquistão em 1971, Golda Meir rechaçou o ataque árabe a Israel no Yom Kippur em 1973, e Margaret Thatcher mandou a Marinha Real britânica retomar as Malvinas em 1982, ajudando a derrubar a ditadura argentina.

¿ Seria interessante ver as mulheres no poder por uns cem anos para vermos se a sensibilidade feminina existe mesmo ou se o poder muda tudo.