Título: VERGONHA ESPERANÇOSA
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 26/11/2005, Opinião, p. 7

AEuropa está envergonhada. A França reconhece a exclusão em que vivem muitos de seus habitantes, especialmente jovens filhos e netos de imigrantes, mas também seus próprios filhos. Os demais países da Europa discutem a construção de um muro que impeça a imigração vinda da África e de outros Países-com-Maioria-da-População-de-Baixa-Renda, similar ao que acontece entre os EUA e a América Latina. A cada mês morrem imigrantes tentando entrar na Europa; nos EUA, nos últimos 10 anos, morreram 3.600 pessoas tentando pular a ¿Cortina de Ouro¿, enquanto nos 29 anos de existência do Muro de Berlim, 192 pessoas morreram tentando pular a ¿Cortina de Ferro¿.

É uma vergonha sem esperança. Porque é um problema sem solução. A Europa e os EUA não conseguirão incorporar todos os que desejarem viver lá. Ambos são vítimas de um conjunto de coincidências históricas: o baixo crescimento demográfico de suas populações, em comparação com a taxa dos povos imigrantes; o desenvolvimento tecnológico que dispensa grandes contingentes de mão-de-obra, e exige elevado grau de educação dos que serão empregados; a desigualdade entre a riqueza do Norte e a pobreza no Sul; a facilidade técnica de locomoção entre países. Some-se a isso a incapacidade de convivência cultural entre as populações européias e alguns grupos de imigrantes e está pronto o quadro para uma vergonha sem esperança.

A Europa não tem saída para uma convivência pacífica. Em breve a migração ocorrerá em massa e os vigilantes de fronteira serão obrigados a atirar contra os invasores. Como já fizeram quando expulsaram mouros e judeus, ou quando invadiram a América matando nativos, ou como deixaram de fazer e Roma foi invadida por ¿bárbaros¿, como são vistos hoje alguns imigrantes.

A desigualdade dentro do Brasil é pior do que na Europa. Os brasileiros socialmente incluídos são mais perversos com seus compatriotas do que os europeus com os imigrantes. Aqui, a exclusão é ainda mais grave do ponto de vista educacional, e conseqüentemente econômico. A vergonha brasileira é maior porque não há a desculpa de se defender contra uma invasão, nem de proteger a cultura ou a religião. Mas nossa vergonha é esperançosa. Porque nosso problema é social, não cultural ou civilizatório. Nossos imigrantes não são estrangeiros, são ¿instrangeiros¿.

A Europa não tem saída porque é difícil incorporar ¿o outro¿, fazer conviver contrários. No Brasil, a convivência depende apenas de políticas públicas dirigidas aos excluídos, os ¿instrangeiros¿. Especialmente da educação desses imensos contingentes de excluídos, sobretudo jovens e crianças.

Mesmo com os investimentos sociais a que o governo francês se propõe, ao lado do estado de emergência e de suas conseqüências repressoras, a longo prazo as estratégias de exclusão por métodos policiais certamente prevalecerão sobre as políticas de inclusão. No Brasil, a inclusão pode prevalecer sobre a exclusão.

No orçamento de 2006, o governo americano prevê a aplicação de US$7,5 bilhões em medidas para ¿enfrentar o grave problema de imigração ilegal¿, utilizando a exclusão física como forma de enfrentar a exclusão social entre os EUA e os países da América do Sul. Se o Brasil gastar por ano R$7 bilhões (apenas 0,4%) a mais do Orçamento federal com educação básica, conseguirá nos próximos anos a inclusão social de toda a sua população. Daremos esperança à nossa vergonha.

O problema da exclusão na Europa decorre de uma evolução que tende a distanciar sua população do resto do mundo; a exclusão brasileira decorre da estagnação da nossa estrutura social, da falta de gestos concretos que permitam completar a Abolição e a República. Por mais que a Europa invista no atendimento aos seus imigrantes pobres, eles continuarão imigrantes, distanciados, sem incorporação plena, ao passo que no Brasil, pequenos gestos integradores, sobretudo na educação, formarão naturalmente uma nação integrada, em poucos anos.

Por isso, nossa vergonha é ainda mais vergonhosa. Mas é esperançosa.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT/DF).