Título: Hora final
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 01/12/2005, O GLOBO, p. 2

Dias de cassação não são dias de festa na Câmara. No geral, não se vota com prazer pela retirada do mandato outorgado pelo povo, por maiores que sejam as divergências e idiossincrasias. Havia ontem dois tipos de deputados dispostos a votar contra José Dirceu: a maioria, temendo a Lei de Darwin na política: quem não o cassasse poderia ser cassado pelo povo na eleição.

Entre estes, muitos votariam por sua absolvição em outras circunstâncias ¿ ou por terem dúvidas sobre seu papel na arquitetura da corrupção partidária ou mesmo por terem concordado e participado dela. Mas esse é um daqueles momentos em que a sobrevivência da espécie exige a seleção, a eliminação dos que representam ameaça e risco. E a espécie parlamentar sente a força dessas ameaças, ouvindo desaforos e cobranças por todos os meios.

Em outra categoria estão os que sempre viram mesmo em Dirceu o artífice do valerioduto e da solidariedade financeira para com os partidos aliados, com ou sem mensalão nos termos descritos por Roberto Jefferson e até agora não provados pelas CPIs. Ao conceber tal esquema, revelaria ele um profundo e indisfarçável desprezo pela instituição parlamentar, do tipo ¿para governar com esta gente, só comprando¿. Essa foi uma das acusações que Dirceu negou com mais veemência no discurso de ontem, admitindo que o PT repassou dinheiro, sim, para os partidos aliados em 2002 e 2004 e que está pagando por esse erro.

A sessão entrava pela noite quando esta coluna foi fechada, não dispondo ainda do resultado final. Esperava-se um placar mais apertado do que o da cassação de Jefferson, fruto do intenso corpo-a-corpo feito por Dirceu nos últimos dias, das mobilizações produzidas em sua defesa e da persistente luta jurídica para garantir o direito de defesa. Mas, mesmo cassado, não saiu pela porta dos fundos da renúncia nem pela fuga da luta política, como têm feito outros acusados. Travou-a com valentia até o fim. Conseguiu demonstrar a fragilidade institucional de um Conselho de Ética que por mais de uma vez foi corrigido pelo Supremo Tribunal Federal.

Ontem mesmo, embora o STF tenha garantido a realização da sessão, a vitória nominal foi de Dirceu. O presidente do Supremo, Nelson Jobim, construiu a saída mediana que possibilitou apenas a retirada de trechos de um depoimento colhido na hora e na ordem erradas, garantindo assim a realização da sessão. Mas tivesse prevalecido a interpretação original da semana passada, a maioria de votos teria sido pelo refazimento do relatório do Conselho de Ética. Todos os cassáveis ficam lhe devendo o esforço maior pela garantia do devido processo legal.

O próprio Dirceu desejava uma sobrevida curta, de uma semana, para realizar mais alguns atos de apoio. Mas acabou convencido pelo amigo e deputado Sigmaringa Seixas de que um novo recurso talvez lhe desse o último suspiro, mas isso acabaria se voltando contra ele. A Câmara já se sentia sufocada pela delonga do processo, em torno do qual tudo vem girando há três meses.

O dia seguinte a uma cassação costuma ser de ressaca moral na Câmara. Assim deve ser hoje, com Dirceu cassado. Mas daqui a algum tempo, passada a purgação desta crise, será tempo de o Congresso refletir sobre a conveniência do julgamento de deputados por seus próprios pares. O deputado Miro Teixeira costuma dizer que isso é um arcaísmo que não existe em democracias modernas. Nelas, entende-se que uma cassação pelos pares, sob a desculpa de que o julgamento é político, pode ser contaminada por fatores subjetivos. No caso de Dirceu, as antipatias, os rancores, os antagonismos ideológicos, entre outros. O mais comum é que um deputado, tendo cometido um crime, tenha seu mandato suspenso pela Justiça até que seja julgado. Se condenado, automaticamente perde o mandato. Se absolvido, reassume, havendo ainda sempre a chance de julgamento pelo eleitor, na eleição seguinte.

De todo modo, o que houve ontem na Câmara foi um episódio singular, um daqueles avisos de que a roda da fortuna é traiçoeira, que quanto mais alta a palmeira, maior o tombo. Dirceu, no poder, abusou da altura, e ele sabe disso. Ele mesmo, ao entrar ontem no Congresso, resumiu a sua hora chegada.

¿ Quem diria, hein!