Título: SuperOutro voa alto
Autor: Rodrigo Fonseca
Fonte: O Globo, 01/12/2005, Segundo Caderno, p. 1

Edgard Navarro sai consagrado do evento com sete Candangos para `Eu me lembro¿

Primo terceiro-mundista do último filho de Kripton, o SuperOutro, personagem-título do filme que consagrou Edgard Navarro nos anos 80, deve estar voando pelos céus da Bahia com um sorriso de vitória. E também com uma dó no coração pela dor que ainda deve estar torturando seu criador, o diretor mais premiado do Festival de Brasília com seu ¿Eu me lembro¿.

¿ Vocês querem me matar! ¿ berrou Navarro. E não foi à toa.

Foi dos mais feios o tombo levado pelo cineasta baiano, um estreante em longas de 56 anos, ao pular de alegria nas escadas de acesso ao palco do Teatro Nacional Cláudio Santoro (sede de encerramento da mostra brasiliense, realizada anteontem), com o prêmio de direção nas mãos. Este foi só um dos sete que recebeu, numa noite em que a única questão política mencionada no palco foi referente à melhora do fomento para o pólo cinematográfico brasiliense. Mas, de alguma forma, o brado castro-alvista que reverbera pelo belíssimo filme de Navarro se reproduziu em seus discursos de agradecimento com uma saliência levemente política:

¿ Já fomos chamados para mostrar o filme na Mostra de Tiradentes e em Tolouse, na França. Tô até pensando em tentar encaixá-lo em Cannes, se os caras de lá me quiserem. Se a aceitação popular for boa, ano que vem não vou estar mais aqui. Mas pelo mundo... Vou até comprar um jatinho ¿ divertia-se o diretor, que, junto das estatuetas, pôs no bolso R$135 mil. ¿ Tô rico!!! Não tô mais pobre!

Há 16 anos, Navarro entrou para a história do cinema nacional graças a ¿SuperOutro¿, que lhe rendeu os Kikitos de filme e direção em Gramado. Antes disso, era ele apenas um curta-metragista furioso (na ativa desde 1976) e talentoso, incorporado na pele de um engenheiro bem formado que, na pindaíba, chegou a participar de campanhas políticas. Após uma entressafra silenciosa, ¿Eu me lembro¿, que ele planeja lançar em fevereiro, esculpe seu nome uma vez mais na pedra fundamental do cinema brasileiro, com um cinzel de tumulto.

¿ Se esta foi a revanche do SuperOutro? Acho que não ¿ diz o cineasta. ¿ Ele nunca foi abatido. Tá voando até hoje. Esta foi a revanche do Edgard Navarro, que ficou no chão por anos e anos.

Também brilharam no encerramento do Festival de Brasília o cineasta niteroiense Evaldo Mocarzel e a líder de movimentos de sem-teto Verônica Kroll, uma das principais entrevistadas pelo documentarista no nitroglicerinado ¿À margem do concreto¿. Mocarzel contabilizou um total de dividendos de R$40 mil, advindos como ganho paralelo ao Candango de melhor som, o prêmio especial do júri e o prêmio de júri popular.

¿ Esse filme deveria atingir e atingiu o público. Agora ele tem que atingir a porta dos palácios onde fica o poder no país ¿ disse Verônica.

Apesar de merecida, a decisão concentrada do júri formado pelo roteirista Di Moretti, os cineastas Érika Bauer, João Jardim e Sylvio Back, a atriz Simone Spoladore, e os jornalistas Inimá Simões e Luiz Carlos Merten em ¿Eu me lembro¿ desmereceu aquele que, por mais tempo, foi o favorito do festival: o bangue-bangue semiológico ¿O veneno da madrugada¿, de Ruy Guerra. Título mais fascinante (e difícil) da competição, ele levou apenas os Candangos de direção de arte e fotografia, contemplando a perfeita sintonia entre os cliques de Walter Carvalho e a composição espacial de Marcos Flaksman. Mas a genial direção de Guerra foi subestimada.

¿ Fazer um filme com Ruy e ser premiado aqui equivalem a ser premiado duas vezes ¿ disse Carvalho, estendendo os méritos que lhe renderam a láurea a Flaksman, ao maquinista, o eletricista e a seus assistentes no filme, entre eles seu filho Lula Carvalho.

Por acaso, Lula fotografou uma das mais injustiçadas produções do festival: ¿Incuráveis¿, de Gustavo Acioli, que sai de Brasília com um Candango só: o de melhor ator para Fernando Eiras. Dado como certo pelo diretor e por boa parcela da crítica tamanha foi a visceralidade de sua interpretação, o prêmio de melhor atriz para Dira Paes acabou nas mãos da baiana Arly Arnaud de ¿Eu me lembro¿. Mas a maior consagração de ¿Eu me lembro¿ foi a quebra de um recorde. Depois de 50 anos de carreira sem nunca ganhar sequer um premiozinho, Fernando Neves, que vive o pai do protagonista, levará para Salvador o Candango de coadjuvante.

O festival cumpriu bem o seu papel

Provocador (mas conservador), ¿A concepção¿, do brasiliense José Eduardo Belmonte, também saiu apinhado de láureas. Dos jurados, abiscoitou os Candangos de trilha sonora e montagem, confirmando o talento de Belmonte e de Paulo Sacramento, montador de ¿Amarelo manga¿ e diretor de ¿O prisioneiro da grade de ferro¿. Da equipe de críticos do jornal ¿Correio Brasiliense¿, ganhou o cobiçado prêmio Saruê. E houve ainda o prêmio de R$50 mil em dinheiro (mais R$10 mil em equipamentos) concedido pela Câmera Legislativa do Distrito Federal aos longas nativos, o que rendeu uma reflexão de Belmonte.

¿ É importante esse reconhecimento. Mas é estranho concorrer com ninguém ¿ provocou o diretor, informando ser o único longa ¿da casa¿ apto a concorrer em 2005.

¿Depois daquele baile¿, de Roberto Bomtempo, foi o único longa concorrente a deixar Brasília com nada mais do que experiência. No fim das contas, fica a sensação de que Brasília cumpriu a missão que a classe cinematográfica lhe atribuiu: dar continuidade à esfuziante fornada que, desde o Festival do Rio, em outubro, demonstra a maturidade estética da produção nacional. Aquela que alguns chamaram, pejorativamente, de ¿pulverizada¿. E outros, com mais bom senso, de renovadora.