Título: Ato final
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 02/12/2005, O Globo, p. 2

Numa paisagem de caras enlutadas, outras ressaqueadas e algumas almas confessadamente culpadas, José Dirceu, o degolado da véspera, surpreendeu pela disposição e bom humor numa entrevista que foi mais do que seu último ato político na Câmara. Nela pode-se perceber o que será Dirceu sem mandato: o agitador político sangüíneo de sempre. Sem mandato, mas agora livre dos limites impostos pelos cargos oficiais.

Os cassados saem quase sempre pela porta dos fundos e somem na poeira do esquecimento. Dirceu reuniu um número expressivo de jornalistas num auditório da Câmara e foi perguntado também sobre temas políticos relevantes, não apenas sobre o que se passou e o que virá. A amabilidade e o bom humor eram faces desconhecidas por aqueles a quem nunca deu atenção quando era poderoso (e estes também foram muito mais dóceis). Reconheceu que errou muito no relacionamento com a imprensa. Não apenas ele, mas quase todo o governo, e isso gerou venenos anti-petistas que também agiram na crise. Mas esta é uma outra conversa, que talvez um dia seja reavaliada pelos dois lados.

Comparou novamente sua cassação a um fuzilamento político, pela ausência de provas, e repetiu algo que deveria incomodar aos catões da Câmara: que ao acusá-lo de ter comandado o mensalão, a Casa estava se pondo também em julgamento. Para dar sentido justo a sua cassação, a Câmara precisa achar os mensalistas e punir a todos, não aos onze que estão na fila.

Ainda assim, Dirceu reiterou resignação democrática, considerando legítimo cada voto que o cassou. Agradeceu apoios, falou da dor e da perda, admitiu erros e arrependimentos, delineou planos e conteve a língua em alguns momentos. Por exemplo, ao dizer que se fosse ele o presidente do PT tudo teria sido diferente (o curso da crise, certamente). Talvez tenha pensado na tibieza petista nas CPIs e no pouco esforço de mobilização que o PT, tão influente sobre os movimentos sociais, fez em sua defesa. Falou-se nas últimas horas que o governo tentou ajudá-lo. Não é verdade. O último esforço parlamentar do Planalto foi para eleger Aldo Rebelo presidente da Câmara. E ganhou. Houve, no máximo, gestos solidários isolados, como o do ministro Jaques Wagner. E se o governo tivesse mesmo agido em seu favor, a oposição teria rugido alto.

Nas entrelinhas, também ficaram as divergências com a política econômica, apesar da defesa que fez de Palocci. De tudo ele tratará, não apenas em livro, mas na ação política que deve retomar, dentro e fora do PT. Henrique Fontana, líder do PT na Câmara, acredita que ele continuará tendo influência no partido e que estará a mil na campanha eleitoral de 2006. Ricardo Berzoini, presidente do partido, admite que a perda dos direitos políticos limitará sua ação mas que ele continuará sendo no PT o que sempre foi: ¿Zé Dirceu, um leão político¿.

É cedo para imaginar a vida do leão na savana. Ele avisou que está cassado, mas que não está morto. Que não terá poder, mas estará mais livre para rosnar e incomodar.

Mas o importante agora é saber se, removido o que a oposição considerava um ¿fator de tensão¿, o ambiente político passará agora a um momento de menor beligerância. Isso, só veremos depois da ressaca, na semana que vem.