Título: Justiça ao modo bárbaro dos traficantes
Autor:
Fonte: O Globo, 02/12/2005, Rio, p. 15

Ordem para matar responsáveis pelo ataque pode ter sido estratégia para manter lucro com a venda de drogas

A ameaça aos lucros da venda de drogas, a necessidade de ostentar poder pela violência e a tentativa de comprar a simpatia de uma parcela da população podem estar por trás do assassinato, por traficantes do Morro da Fé, de quatro autores do ataque ao ônibus 350 (Passeio-Irajá), em Brás de Pina, segundo especialistas e pesquisadores da área de segurança. Eles condenaram o ato, chamando a atenção para fato de que os bandidos agiram com mais rapidez do que a polícia na identificação dos culpados e fizeram justiça a seu modo: o da barbárie. Destacaram ainda que os traficantes atuaram no vácuo deixado pela polícia e pela Justiça.

O episódio mostra mais uma tentativa do tráfico de assumir tarefas do estado. Recentemente, o bandido Joca, que domina a venda de drogas na Rocinha, deixou claro que não queria assaltos entre o Shopping Downtown, na Barra, e o Humaitá, área que diz controlar.

Na opinião do coronel da PM José Vicente, ex-secretário nacional de Segurança, o atentado prejudicou o movimento de venda de drogas na comunidade, porque chamou a atenção da opinião pública e levou a polícia a agir com mais rigor contra o tráfico. Ele destacou ainda que o tráfico também tenta manter ¿a imagem de bonzinho¿ nas comunidades em que atua.

¿ Para a maioria dos traficantes, um atentado não interessa, por causa da pressão da opinião pública e da polícia. Além disso, a incompetência do poder público leva a esse tipo de ação de justiça pelas próprias mãos, uma volta às ações tribais ¿ disse.

Para a pesquisadora Leonarda Musumeci, do Centro de Estudos e Pesquisas em Segurança da Universidade Candido Mendes (Cesec/Ucam), os traficantes mandaram um duplo recado para a sociedade:

¿ Primeiro eles disseram que podem aterrorizar e impor o caos. E, depois, que eles tomam conta da segurança da área e que são mais eficazes do que a polícia. Os recados mostram a impotência do estado. É assustador.

Gilberto Velho: ¿Temos tribunais de bandidos¿

O antropólogo Gilberto Velho afirma que o Rio vive ¿um império de ausência de leis¿:

¿ Temos tribunais de bandidos fazendo sua justiça, em uma clara desconsideração ao poder público.

Já o pesquisador Michel Misse, da UFRJ, condena o uso da expressão ¿tribunal do tráfico¿, argumentando que os bandidos não seriam suficientemente organizados para isso:

¿ Aquilo foi assassinato. Eles (os traficantes) estão cada vez mais desorganizados. O único recado claro foi o seguinte: nós não mandamos fazer isso (incendiar o ônibus).

Para o sociólogo Glaucio Soares, do Iuperj, o atentado atraiu a atenção da polícia para a favela, o que os traficantes tentaram corrigir à maneira deles:

¿ O ataque é profundamente burro. O que os bandidos fizeram depois foi corrigir a burrice à maneira deles. Dizendo: ¿Não venham para cima, porque eu não faço parte disso¿.

Marcelo Freixo, presidente da ONG Justiça Global, ressalta que a lógica dominante no tráfico é a da violência:

¿ A lógica do tráfico atende exclusivamente a linguagem da violência. Mas a rapidez na identificação dos bandidos mostra uma inserção na comunidade que a polícia não tem.

Segundo o pesquisador José Trajano, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, a ação do tráfico não pode ser qualificada como justa:

¿ Essa foi uma pura ostentação de força. Sem nenhum senso de justiça.

Já André Luiz Lima Vieira, filho de Luís Antônio de Carvalho Vieira, um dos cinco mortos no incêndio no 350, disse que o assassinato, a tiros, dos autores do atentado não foi suficiente para vingar a morte do pai.

¿ Não é que eu deseje vingança, mas a morte a tiros foi muito rápida. Eles deviam ter sido queimados também. Não acho que tenha havido Justiça ¿ disse André Luiz.