Título: ASSASSINADOS PELO ABORTO
Autor: D. EUGENIO SALES
Fonte: O Globo, 03/12/2005, Opiniao, p. 7

Acelebração do Natal do Menino Jesus está às portas. Em todo o mundo cresce a expectativa da comemoração de tamanha importância para a humanidade. Enquanto alguns se agitam dentro de um interesse comercial, outros, conscientes de sua responsabilidade cristã, buscam com afinco um aconselhamento espiritual nesta oportunidade. Trata-se de uma tarefa pessoal e comunitária. Nada mais oportuno que recordar alguns documentos do Papa João Paulo II para o período natalino.

Assim começa a Incarnationis Mysterium, bula de proclamação do Grande Jubileu do ano 2000: ¿Tendo o mistério da encarnação do Filho de Deus diante dos olhos, a Igreja está para cruzar o limiar do terceiro milênio. Neste momento, mais do que nunca, sentimos o dever de fazer nosso o cântico de louvor e agradecimento do Apóstolo: `Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que, do alto dos Céus, nos abençoou com toda espécie de bênçãos espirituais em Cristo. Foi assim que n¿Ele nos escolheu antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados diante dos seus olhos. Predestinou-nos para sermos seus filhos adotivos por meio de Jesus Cristo, por sua livre vontade¿.¿ E logo a seguir afirma: ¿Por estas palavras se vê claramente que a história da salvação tem o seu ponto culminante e significado supremo em Jesus Cristo. N¿Ele, todos nós recebemos `graça sobre graça¿ (Jo 1, 16), conseguindo ser reconciliados com o Pai (cf. Rm 5, 10; 2 Cor 5, 18)¿ (nº 1).

Em meio à agitação das compras e dos preparativos de ordem material, meditemos, no íntimo de nosso ser, o seguinte trecho do documento Incarnationis Mysterium: ¿O nascimento de Jesus em Belém não é um fato que se possa relegar para o passado. Diante d¿Ele, com efeito, está a história humana inteira: o nosso tempo atual e o futuro do mundo são iluminados pela sua presença. Ele é `o Vivente¿ (Ap 1, 18), `Aquele que é, que era e que há de vir¿ (Ap 1, 4). Diante d¿Ele, deve dobrar-se todo joelho no céu, na terra e nos abismos, e toda língua há de proclamar que Ele é o Senhor (cf. Flp 2,10-11). Cada homem, ao encontrar Cristo, descobre o mistério da sua própria vida.¿

Diante de tanta angústia em nosso país, tão querido, e em vários outros setores habituais da existência humana, ferida pelo pecado original, o presépio é um lugar privilegiado para reler umas e outras passagens evangélicas. O perigo que nos deve angustiar não nasce do fato em si, mas de enfrentá-lo sozinho. Por isso, neste período natalino, proponho a meditação desses e de outros trechos. Vivê-los junto ao Presépio com suas extraordinárias e oportunas lições. O Salvador é levado no regaço da Virgem Mãe. Antecipadamente vemos o Menino Jesus, que já é o Crucificado, perseguido por Herodes, que mata os inocentes da redondeza de Belém na louca expectativa de incluir entre eles o suposto usurpador de seu trono. Lágrimas de tantas mães se unem às de Maria ao pé da cruz e o sangue das crianças ao do Cristo flagelado e crucificado.

Meditemos no que ocorre entre nós, no Rio de Janeiro, no Brasil e em todo o mundo. Há uma só diferença. Em Belém, foram soldados que ceifaram vidas e hoje, milhares de seres vivos no seio da mãe são assassinados pelo aborto. Cada Natal recorda a matança dos inocentes por ordem de Herodes tentando encontrar Jesus, salvo no refúgio do Egito. Neste colóquio diante do Presépio, neste tempo natalino, peçamos ao Menino Jesus que ilumine a inteligência e comova o coração dos homens na defesa da vida.

Estas reflexões na época do Natal levam-nos a uma atitude de otimismo. Diante da realidade terrena, das imensas dificuldades do mundo de hoje, alguém que tranqüilamente contempla o Presépio e escuta a voz misteriosa do Deus que se fez carne não poderá ser dominado pelo pessimismo. Brota, então, do íntimo do ser humano um imenso grito de gratidão, de reconhecimento a esta Criança, que se fez semelhante aos homens, para que nós nos assemelhássemos a Ele.

Em resumo, nós, cristãos, devemos resgatar o autêntico espírito natalino. Nesta época do ano, algo extraordinário percorre as nações de todo o universo. Até mesmo em povos que não reconhecem a transcendência do nascimento de Jesus há um clima de mais fraternidade entre os homens, um desejo de difundir o bem e promover a alegria espiritual.

A Sagrada Escritura afirma que Maria se encontrava no Cenáculo entre apóstolos e discípulos (At 1, 14): ¿Todos eles perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele.¿ Essa figura materna continua até nossos dias, na história da Igreja. E assim permanecerá até o final dos tempos.

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da arquidiocese do Rio.

Cada Natal recorda a matança dos inocentes