Título: `TEM DE APRENDER A JOGAR NOS DOIS TIMES¿
Autor: Dorrit Harazim
Fonte: O Globo, 04/12/2005, O País, p. 14

Penitenciária Feminina da Capital, que abriga 700 presas, é comandada a mão-de-ferro pela diretora Maria da Penha

SÃO PAULO.Na semana passada, a condição desumana de uma ex-bóia fria de 79 anos e 15 netos, reduzida a menos de 40 quilos por um câncer terminal e definhando na cama de uma penitenciária feminina de São Paulo, foi mostrada em reportagem de Gilmar Penteado na ¿Folha de S. Paulo¿. Presa há quatro meses na casa em que mora com um filho, onde foram encontradas pedras de crack, ela aguarda julgamento no presídio feminino do Tatuapé, apesar de não ter antecedentes criminais e negar a acusação.

O encarceramento da idosa está amparado pela lei de crimes hediondos que proíbe a concessão de liberdade provisória a acusados de tráfico de drogas e seqüestro. Mas dado que existe a figura da excepcionalidade por razões humanitárias, benefício negado à ex-bóia-fria em estado terminal, era inevitável que o caso Iolanda Figueiral passasse a ser visto como mais uma injustiça da Justiça. E antes que a condição da detenta piorasse, decidiu-se por sua transferência para a Penitenciária Feminina da Capital (PFC), que tem enfermaria e instalações gerais mais bem aparelhadas. As 700 presas da unidade já a aguardavam e se prontificavam a tomar conta da ¿velhinha do Tatuapé¿.

¿ Elas tomam conta. Gostam das velhas ou as usam. Quem pensa que a vida exterior não entra num presídio está equivocado ¿ diz a diretora geral da PFC, Maria da Penha Dias. ¿ Tudo acaba afetando. Se desaba um temporal e São Paulo inunda, o reflexo é imediato: a agente penitenciária chega tarde, falta luz. Muros não isolam, pois elas têm o rádio, a TV, as visitas. Nesta unidade as presas também podem receber todo tipo de jornal e revista, exceto as pornográficas.

Diretora do presídio foi carcereira por 12 anos

Presídios fincados em ambientes urbanos sempre parecem mais esdrúxulos do que prisões erguidas em paisagens lunares afastadas. No caso da Penitenciária Feminina da Capital, o contraste é radical. Da guarita externa que controla o portão de entrada da unidade, o agente Beethoven pode acompanhar o movimento de um imponente hipermercado de produtos eletrônicos situado do outro lado da avenida. De várias celas dos quatro pavilhões internos pode-se ver o Center Norte, um dos shoppings mais mastodônticos de São Paulo. Três lojas de artigos para bebês são vizinhas dos muros que abrigam seqüestradoras, homicidas, falsárias, assaltantes e condenadas por engano, a maioria das quais tem filhos. Na esquina, um Mc Donald reluzente compõe o quadro de normalidade da vida ¿lá fora¿.

A autoridade máxima nessa que é a mais antiga entre as dez penitenciárias femininas do estado é Maria da Penha Dias. À primeira vista, figura pouco talhada para se impor a carcereiros e encarcerados: tem um metro e meio de altura, mais de 60 anos de idade, família completa ¿ marido, filhos, netos ¿ e ostenta um bem-estar com a vida. Ou seja, tudo para ser engolida pelas armadilhas do sistema. Na prática, deu-se o contrário e a doutora Penha atribui sua ascendência sobre agentes penitenciárias e presas ao fato de ter começado lá embaixo. Antes de assumir o cargo de diretora geral, em 1983, foi carcereira por 12 anos, depois chefe, e ocupou diretorias de segurança e disciplina. Currículo pleno para quem precisa conhecer todas as manhas da engrenagem prisional feminina. A seguir, opiniões da diretora e alguns causos contados por ela semana passada, enquanto aguardava a chegada da bóia-fria Iolanda:

MUDANÇA DE PERFIL DAS PRESAS: ¿Mudou da água para o vinho. Eram mais humildes e menos jovens. A faixa etária está entre os 20 e 30 anos. Hoje já chegam da rua com perfil agressivo e petulante. É claro que o meio carcerário vai dar uma lapidação nesse perfil, dando-lhe características ainda mais delinqüenciais. A prisão é uma escola. Chegam imaturas, imediatistas, com personalidade não totalmente formada, querem as coisas para já. Temos 38% de reincidentes em nossa unidade, o que é bastante¿.

DIFERENÇA DE COMPORTAMENTO MASCULINO E FEMININO NA PRISÃO: ¿Nunca trabalhei em unidade masculina, mas pelo que leio e ouço de colegas o homem extrapola menos, tem equilíbrio melhor de sua agressividade. A mulher fala demais, gesticula demais, dramatiza demais, desequilibra-se com facilidade. Na prática isso resulta numa freqüência maior de somatizações com doenças, encrencas com familiares, encrencas com colegas, ciúmes¿.

HOMOSSEXUALISMO: ¿Na maioria das vezes é a circunstância prisional que faz com que a presa abdique da vida familiar que tinha lá fora e aceite uma relação homossexual. A carência afetiva aqui dentro é abissal, se comparada à de presos homens (segundo dados recentes, a presa recebe um terço das visitas de parentes do que os homens, e o primeiro a sumir costuma ser o companheiro da vida `lá fora¿). A iniciativa da conquista sempre parte de detentas que já eram homossexuais lá fora. A olho nu realmente parecem homens, com barba e pêlos. Temos uma interna com cavanhaque. Embora sendo de uma geração com outros valores, preciso me adequar à realidade de hoje. Apenas não permito manifestações abertas e considero falta grave o aliciamento forçado ¿ se relação há, ela deve ser consensual, ponto. Dentro desses parâmetros novos, cobro moral e bons costumes. Até porque aqui também temos detentas idosas, religiosas, visitas de familiares com filhos, netos. E, sobretudo, temos nosso quadro de agentes penitenciárias, que se incomodam muito com o homossexualismo prevalente. O funcionário pressiona muito. Quando fareja fragilidade do diretor, ele sobe em cima¿.

LIDERANÇAS INTERNAS: ¿Ao contrário do que ocorre nos presídios masculinos, no feminino quem manda nas galerias não é o preso. Nós não temos a figura do `faxina¿. Mas é claro que existem líderes nos pavilhões. Sabemos quem são e podamos na hora que precisa. Nesse ponto a mulher é mais capciosa, fica na dela quando necessário. O que acaba perpetuando a liderança de bastidor é a falta de agentes penitenciários. Deveríamos ter cinco por pavilhão. Temos duas, quando muito. Isso abre espaço para a intimidação de detentas fragilizadas. Uma das torturas psicológicas mais usadas pela liderança consiste em anunciar, a toda hora, a iminência de uma rebelião, um acerto de contas. Ou inventar que os comandantes das facções criminosas ordenaram a execução de alguém.¿

SUZANE VON RICHTHOFEN ESCAPA: ¿A última rebelião de verdade ocorreu em agosto de 2004, com a transferência da mulher de um líder da facção PCC caído em desgraça. Já chegou jurada de morte e a casa explodiu. A ordem do comando era clara: `mata a Aurinete¿. Eu mesma tive de retirá-la de uma cela de segurança para onde havia sido encaminhada por precaução, dei ordem para que o portão fosse aberto. Enfiei-a numa ambulância que descarregava outra detenta.

Com Aurinete fora de alcance, ficou claro que as rebeladas se voltariam contra alguém importante na casa. Rebelião que começa para matar alguém não acaba sem alguém morto. Na época estava conosco a presa mais notória do país, Suzane von Richthofen (a jovem bem nascida de cabelos dourados acusada, junto com os irmãos Daniel e Cristian Cravinhos de Paula e Silva, de planejar o assassinato dos pais a golpes de bastão, enquanto dormiam). Ela estava dando plantão no pavilhão da enfermaria quando estourou a rebelião no pavilhão 4. Uma agente teve a clarividência de trancá-la dentro de um armário, mas ficou patente que outras presas de plantão acabariam por farejá-la e arrombariam a porta. Num lance de audácia, a chefe de segurança removeu Suzane para o pátio da enfermaria, e a deixou ali, a céu aberto, a noite toda e parte do dia seguinte. Nunca alguém iria imaginar que deixaríamos essa criatura num lugar de onde poderia pular o muro. Mas foi um risco calculado: Suzane não tentaria fugir porque não saberia fazê-lo. Seu perfil é outro.

Sem Aurinete e sem Suzane, o motim poderia querer executar outra presa de repercussão na mídia, Norma Rocha Mattos (ex-mulher do juiz federal João Carlos da Rocha Mattos, acusado de ser o mentor de uma quadrilha que vendia sentenças judiciais). Ela acabou escondida dentro de um saco de lixo e também se salvou. Por fim, degolaram uma presa instável que costumava tirar a roupa em público e sonhar que a cantora Gretchen lhe acariciava os seios. (Segundo as rebeladas, a vítima fez por merecer pois seria informante da carceragem. Quanto a Suzane, foi transferida para outra penitenciária como condição das amotinadas para encerrar a rebelião, e obteve o benefício da liberdade provisória em julho de 2005. Seu julgamento está previsto para 2006).¿

COMPORTAMENTO DE PRESAS CLASSE A: ¿Quando chega alguém com esse perfil a gente segura numa cela antes de mandá-la para um pavilhão. Ela precisa aprender a ser presa antes de se juntar às demais. Tenho seis celas aqui perto da minha sala para essa fase de adaptação. Se é uma jovem, começamos por explicar a questão do homossexualismo. Se é alguém de mais idade alertamos para que domine seus preconceitos. Essa assistência intensiva envolve um trabalho com assistente social, psicóloga, médico, e eu mesma me encarrego de alguns ensinamentos básicos. Preparo a ricaça para não falar, ou melhor, para aprender a linguagem daqui e a andar simplizinha, de meia soquete e tênis de supermercado. Recomendo à família que não traga camiseta que não seja Hering de feira.

A novata precisa saber que em cadeia tem chantagem, tem extorsão, convivência com drogas. Tem de aprender a jogar nos dois times para sobreviver. Eu ensino. O medo maior da Suzane era que eu mandasse cortar o seu cabelo, porque chegou aqui com imagens de filme de ficção americano. Ficou aliviadíssima ao saber que não. Também providencio alguém para ficar na cela com a novata no início da vida em pavilhão, e tomar conta dela. A Norma Rocha Mattos acabou ficando um ano e meio aqui e se enturmou muito bem. Mulher inteligente, fez meio de campo. E por aparentar mais idade, ter jeito de senhora, sua inserção foi mais fácil¿.

TROCA DE IDENTIDADES: ¿É mais do que comum. Tivemos o caso de uma presa que entrou aqui grávida, com nome de Joana. Foi para o hospital com nome de Joana. Registrou a criança como filha de Joana. Só que seu RG era roubado e o nome verdadeiro talvez nunca seja descoberto. Como consertar uma situação dessas, que já passou para outra geração? Até a coisa ser eventualmente esclarecida, `Joana¿ pode ter cometido vários crimes em nome da criatura do RG roubado.

O uso de falsa identidade é freqüente em reincidentes, para aliviar a pena, e nossos pedidos de averiguação vão se acumulando na mesa do juiz, que tem milhões de outros processos para destrinchar. Quando temos suspeitas ou quando elas mesmas contam a fraude, procuramos esclarecer. Caso contrário, elas vão entrar e sair com nomes falsos. Uma das seqüestradoras de Washington Olivetto, por exemplo, tem por identidade prisional `Rosa¿ ou `Carina¿. Outro dia o advogado da presa me telefonou informando que `a mãe da Carina, que para a senhora é Rosa¿, ligou da Espanha para ter notícias da filha. Aparentemente ela foi presa com dois passaportes¿.

DONA BARATINHA: ¿A presa mais idosa da unidade, até a chegada da doente terminal esta semana, é uma carente que todos chamam de dona Baratinha. Ela vai e volta, sai e é presa novamente. Tem 75 anos, cabelo branco, rouba xampu, calcinha, coisa boba nas Lojas Americanas. Como é pobre, é considerada ladrona. Se fosse rica seria cleptomaníaca. Ela custa mais caro na prisão, só em médico e remédio, do que se o governo lhe desse uma aposentadoria de idoso. A dúvida é se pararia de roubar. Ela ainda não aprendeu a viver solta¿.