Título: OS PILARES DAS OBRAS EM FAVELAS
Autor: Selma Schmidt
Fonte: O Globo, 04/12/2005, Rio, p. 24

Lojas de material de construção crescem em comunidades, mas 80% dos negócios não são tributados

Oitmo frenético de obras em áreas carentes coloca as lojas de material de construção em segundo lugar no ranking dos estabelecimentos comerciais que estão em maior número nas favelas cariocas. Elas só perdem para os botequins, segundo o vice-presidente da Federação de Favelas do Rio de Janeiro (Faferj), José Nerson de Oliveira. Poucas dessas lojas têm alvará de funcionamento, concedido pela prefeitura: 93 num universo de 752 favelas reconhecidas pelo Instituto Pereira Passos. Mas a informalidade atinge mesmo aquelas legalizadas, diz o presidente do Conselho de Varejo da Associação Comercial do Rio, Daniel Plá. A estimativa de Plá é de que 80% do faturamento do setor de material de construção em favelas não são tributados.

¿ A alta taxa de informalidade em favelas, onde os compradores em geral não exigem nota fiscal, tem impacto na arrecadação de tributos. Além disso, é difícil para uma loja de material de construção do asfalto concorrer com uma da favela ¿ diz Plá. ¿ O ramo do material de construção em favelas é um dos mais prósperos.

Proprietário de uma loja de material de construção argumenta que, apesar de as vendas serem boas, é preciso fazer concessões para manter o seu negócio numa favela:

¿ Tem bandido que compra fiado, não paga e não se pode cobrar. E, quando matam um traficante, não podemos trabalhar. Somos obrigados a fechar ¿ conta ele, que pede para não ser identificado.

Violência prejudica trabalho de fiscais

Tamanha informalidade é ainda conseqüência da fiscalização deficiente. O coordenador de Licenciamento e Fiscalização da Secretaria municipal de Governo, Luís Felipe Gomes, explica que, como no asfalto, qualquer loja de favela precisa ter alvará para funcionar. Ele reconhece, no entanto, que o trabalho de fiscais em áreas dominadas pelo tráfico de drogas é prejudicado em função da violência:

¿ Para os agentes públicos entrarem nesses locais, temos de montar uma operação e ter o apoio da Polícia Militar e da Guarda Municipal. Isso cria dificuldades para nossa atuação.

O vice-presidente da Associação dos Comerciantes de Material de Construção do Estado do Rio (Acomac), Luso Soares da Costa, lamenta que as favelas tenham se tornado um mundo à parte, onde as autoridades não entram:

¿ As lojas do asfalto não conseguem vender para a favela, onde o comércio não paga tributos e, portanto, pode oferecer preços mais em conta. Não tem condições de competir. Já os comerciantes de favela vendem para o asfalto.

O piauiense Onofre Cantuário Filho, de 48 anos, é um deles. Com uma loja no Morro do Cantagalo, em Ipanema, e outra no Morro do Banco, no Itanhangá, ele não fecha nem aos domingos e feriados. Mesmo sem ter caminhão de entrega, tem fregueses que sobem o Cantagalo:

¿ Os pedreiros que fazem obras nos fins de semana lá embaixo sabem que minha loja está aberta e trazem os clientes. Se a gente não tiver objetivo e não trabalhar muito, não vai em frente.

Onofre vive no Rio há 34 anos e há 27 montou a loja no Morro do Banco, onde tem também um apartamento. No Cantagalo, está estabelecido há 17 anos: nos fundos da loja, tem um depósito, apelidado de Caverna do Batman, e no primeiro andar uma pequena moradia. O seu faturamento varia de R$200 a mil reais por dia.

O comerciante informal tem planos. Assim que as obras do Favela-Bairro no Cantagalo acabarem, pretende comprar uma picape para fazer entregas. Ele quer ainda regularizar o seu negócio, o que fora prometido pelos responsáveis pela implantação do Favela-Bairro na comunidade. Mesmo sem estar licenciado, Onofre dá nota para os fregueses.

¿ Como não tenho CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), não consigo comprar direto de fabricantes. Tenho de comprar de depósitos, que revendem mais caro as mercadorias ¿ lamenta ele.

O cearense Antônio Gentil Viana Melo, de 38 anos, tem uma loja no Largo do Boiadeiro, na Rocinha, há três anos, que vende de material para fundações a produtos de acabamento. Ele garante que o seu negócio está legalizado. Apesar do pouco tempo no mercado e da concorrência acirrada na favela, Gentil já está construindo um prédio de três andares em cima de sua loja: um destinado a depósito, um a moradia e outro ainda sem destinação.

¿ Minha prioridade é trabalhar, inclusive aos domingos e feriados ¿ revela Gentil, que aceita cartões de crédito, tem carrinhos de mão para fazer transporte dentro da comunidade e conta com um caminhão para entregar mercadorias a fregueses de bairros como São Conrado e Barra.

A loja de Gentil é a maior de material de construção da parte baixa da Rocinha e o comerciante diz que tem um faturamento de cerca de R$800 por dia. Seguindo pela Estrada da Gávea, estão outros estabelecimentos grandes: a Sinval Materiais de Construção, a P.G. Domiciano e o Bazar London. Paulo Roberto Nascimento é dono do Bazar London há 12 anos e assegura que tem licença:

¿ O negócio já foi bom. Hoje, temos muitos concorrentes. Era bom que a prefeitura fechasse quem não tem alvará ¿ diz Paulo.

Diretor da Associação de Moradores do Bairro Barcelos, Edigler Viana estima que a Rocinha tenha cerca de 40 lojas de material de construção, entre pequenas e grandes. Só na Via Ápia são quatro. Frente a frente estão a ACS e a Play King, as duas sem alvará da prefeitura. A ACS aceita pedidos pelo telefone e faz entregas em bairros da Zona Sul. O sergipano José Raimundo Santos Profeta, conhecido como Rei, de 51 anos, gerente da Play King, não pode fazer entregas fora da Rocinha porque não tem caminhonete:

¿ Não aceitamos cartão, e cheque só de freguês conhecido. Mas fazemos abatimento. Numa comunidade um tem de ajudar o outro.

O presidente da Associação de Moradores de Rio das Pedras, Eli Bittencourt, calcula que, na comunidade, existam pelo menos 50 lojas de material de construção. Com alvará, a Madeireira Fluzão, uma das maiores, funciona há quase 14 anos num imóvel alugado por R$4 mil por mês, tem fregueses de Jacarepaguá e da Barra e aceita todos os cartões de crédito.

Martelão vende até para lojas em favela

Com entradas para a Avenida Engenheiro Souza Dantas e para a Rua Nova e cerca de 400 metros quadrados, o Martelão vende tanto para pessoas físicas quanto para outras lojas menores no miolo de Rio das Pedras. Todos os funcionários trabalham uniformizados. Os donos conseguiram comprar casa própria na Freguesia, em Jacarepaguá. A loja não abre aos domingos, mas funciona nos feriados.

¿ Só aceitamos cartão de débito. Cheque só de clientes conhecidos ¿ afirma Tiago de Farias, filho dos donos, que cuida da loja quando não está na faculdade de direito.

Não existe um levantamento sobre o número de lojas de material de construção em favelas. Mas Daniel Plá faz projeções. Em cada uma das dez maiores favelas do Rio, diz, existem pelo menos três lojas de material de construção de grande porte.

¿ Cada uma dessas 30 lojas tem faturamento médio de cerca de R$100 mil por mês. Portanto, todas juntas têm um faturamento mensal de R$3 milhões, grande parte não tributados ¿ diz ele.