Título: MENOR DETIDA CONFESSA: ORDEM ERA MATAR TODOS
Autor: Alba Valério Mendonça, Carla Rocha, Juliana Baiao
Fonte: O Globo, 04/12/2005, Rio, p. 32

Envolvimento de menores com o tráfico explicaria ataques como o incêndio do ônibus 350, segundo especialistas

e Rodrigo March

A polícia deteve na madrugada de ontem, na Favela do Jordão, na Taquara, uma menor de 13 anos que confessou sua participação no ataque ao ônibus da linha 350 (Passeio-Irajá), que deixou cinco pessoas mortas carbonizadas e 14 feridas na noite de terça-feira, em Brás de Pina. Em depoimento de três horas, a menor disse que a ação foi planejada pelo bandido conhecido como Lorde, em represália à morte de um traficante, e que a ordem era que todos os passageiros fossem mortos dentro do ônibus incendiado.

A menor reconheceu os quatro bandidos que foram mortos por traficantes e entregues à polícia. Ela confirmou que eles participaram do ataque e contou que a ordem para matá-los partiu de um traficante conhecido como Mica, adversário de Lorde da mesma facção. Segundo ela, ele teria aproveitado a oportunidade para se livrar do pessoal do grupo de Lorde, chefe do tráfico no Morro da Fé.

Segundo a menor, na noite do ataque houve uma reunião, na Favela Guaporé, para planejá-lo, na qual participaram ela, Lorde e mais seis pessoas, entre elas a namorada do traficante, conhecida como Brenda. No encontro, os bandidos já estariam com o galão de gasolina utilizado para incendiar o ônibus. Naquela noite, eles teriam ouvido de Lorde a ordem para cercar o primeiro ônibus que passasse e queimá-lo com os passageiros dentro. As duas jovens teriam dado sinal para o veículo parar.

Menor não demonstrou arrependimento

O chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins, esteve na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), onde a menor foi ouvida, e disse que a polícia procura o bandido Lorde, a outra jovem e um bandido conhecido como Dalua. O chefe da Polícia Civil acredita que o ataque tenha sido uma vingança à morte do traficante conhecido como Ciborg, que, segundo ele, morreu no dia do ataque numa operação da polícia. Em seu depoimento, a menina, em momento algum, falou que o atentado teria sido motivado após uma extorsão de PMs contra o traficante Lorde, como investiga a Secretaria de Segurança. Álvaro Lins disse que essa hipótese está sendo investigada pela PM e que será pedida à Justiça a quebra do sigilo telefônico de dois sargentos do 16º BPM (Olaria), suspeitos da extorsão.

A menor foi detida por policiais do 22º (Maré) e do 23º (Leblon) BPMs, após denúncia de moradores. Órfã, ela estava na casa da avó. Segundo o delegado-ajunto da DPCA, Alessandro Thiers, em momento algum ela demonstrou arrependimento no depoimento e mostrou-se fria e tranqüila. Ela contou que embalava drogas para o tráfico e que teria sido apresentada à Lorde por um irmão que também trabalharia com o traficante. A menor será punida com uma medida sócio-educativa e levada para um abrigo de menores.

De 1980 a 2001, de acordo com uma pesquisa que deu origem ao livro ¿Crianças do tráfico¿, do antropólogo inglês radicado no Brasil Luke Dowdney, o número de menores presos por tráfico no Rio passou de 110 para 1.584, o que representa um aumento drástico de 1.340%. Essa estatística, muitas vezes esquecida pelas autoridades públicas, volta ao centro das discussões.

¿ No início dos anos 90, quando dirigi o sistema penitenciário, os traficantes mais antigos me diziam que se preocupavam muito com esta garotada, que se drogava e não pensava duas vezes ao apertar o gatilho. Hoje vemos que isto de fato significou uma grande mudança ¿ analisa a socióloga Julita Lengruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, que comandou o Desipe de 1991 a 1994.

A partir da década de 90, crianças e adolescentes, que costumavam ter funções de menor importância nas quadrilhas, passaram a pegar nas armas para brigar pelo disputado mercado de drogas. O fenômeno foi agravado pela crise de valores da sociedade atual e por problemas sociais. Especialistas ouvidos pelo GLOBO concordam que a ¿infantilização¿ das quadrilhas armadas é um dos fatores que culminaram com a trágica história do ônibus 350.

Pesquisadora do Viva Rio e formada em política social, Marianna Olinger, parceira de pesquisas de Dowdney, que está fora do país, vê com preocupação o impacto dos resultados da pesquisa junto à opinião pública. Ela lembra que adolescentes também são as principais vítimas das estatísticas de morte por armas de fogo. O livro, que desnuda a realidade das ¿crianças-soldados¿, também revela que, de 1987 a 2001, o total de jovens mortos por armas de fogo no Rio foi oito vezes maior do que em territórios palestinos. Foram 467 crianças e adolescentes mortos no conflito no Oriente Médio contra 3.937 no Rio.

¿ Antes de ser a causa do problema, o crescimento da participação do jovem no tráfico é conseqüência da falta de uma série de políticas sociais em áreas como edução e de falhas na geração de emprego ¿ alerta Marianna.

Mas o envolvimento cada vez maior de crianças e adolescentes com o tráfico não é a única explicação para o uso de métodos terroristas por bandos armados. Doutora em sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, Patrícia Rivero acha que o nível de crueldade cada vez maior tem uma motivação econômica muito forte.

¿ Fatos bárbaros como os que aconteceram têm aumentado. A estrutura do tráfico está cada vez mais caótica e a competição aumentou muito. As pessoas que estão no comando das quadrilhas são cada vez mais jovens e têm vínculos mais frágeis com as comunidades onde mantêm seus ¿negócios¿.

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