Título: SAUDADE E SUSPEITA NO LEGADO FAMILIAR DE ARAFAT
Autor: Fernando Duarte
Fonte: O Globo, 04/12/2005, O Mundo, p. 45

Com medo de ser o próximo alvo, irmão do líder palestino lembra de infância ao seu lado e acusa Israel de tê-lo envenenado

ABU DHABI, Emirados Árabes. No saguão do hotel, o homem de terno já se destaca dos demais, vestidos com a tradicional gandura árabe. Também parece bem menos relaxado. Mohse Arafat sabe bem os riscos do sobrenome e do parentesco. Único irmão vivo de Yasser Arafat, morto há pouco mais de um ano, esse dentista de 55 anos diz não perder o sono com a possibilidade ¿ bastante real ¿ de ter seus passos vigiados pela inteligência de Israel. Já se acostumou ao ritual de evitar desconhecidos ¿ a entrevista ao GLOBO precisou ser intermediada por um jornalista do ¿Asharq al-Awsat¿, o maior diário do mundo árabe ¿ e de olhar sobre os ombros.

¿ Prefiro não imaginar que meus telefones estejam grampeados. Mas ninguém de nossa família pode acreditar que a vida será um dia normal ¿ conta Arafat, com um sorriso resignado.

Separação e saudades do irmão mais velho

Mohse não se esconde atrás das fronteiras dos Emirados Árabes, que até agora resistiram à onda de atentados. Quando pode, visita os territórios palestinos e gosta de ver o impacto que o sobrenome no passaporte causa nos agentes israelenses que controlam o acesso a determinadas áreas. Também não tem medo de falar e, ano passado, quem quis ouviu Mohse acusar Israel de ter assassinado o irmão que cresceu admirando.

¿ Yasser era 25 anos mais velho que eu e nossa convivência foi marcada por muitos períodos de separação e saudades. Mas desde pequeno eu sabia que havia algo especial em seu destino. Lembro-me especificamente de quando nos encontramos no Egito, nos idos de 1965 e ele, já com um diploma de engenharia e um olhar envelhecido, dizia-me que estava na hora de fazer algo mais pela causa palestina ¿ conta Mohse.

Num tom professoral, Mohse, um dos oito irmãos do líder palestino, explica que, mais do que a projeção internacional, o grande legado de Arafat foi ter organizado a resistência palestina, transformando num movimento respeitado o que antes era um amontoado de focos rebeldes.

¿ Todos nós ajudamos de alguma maneira. Nem todo mundo precisa ser soldado para colaborar com o esforço de guerra.

Mohse diz que colabora até hoje, seja em doações em dinheiro para organizações como a Cruz Vermelha ou na ajuda a palestinos mais necessitados que encontra em suas andanças. Sua fala mansa não se altera quando perguntado sobre o argumento de que o irmão foi um terrorista e que pode ter atrapalhado mais do que ajudado a causa palestina.

¿ Ele recebeu o Nobel da Paz, se não me engano ¿ diz, com um sorriso irônico. ¿ Mas vejo pouca gente falar de iniciativas como o financiamento de escolas e abrigos para órfãos palestinos, por exemplo.

Sua justificativa para a acusação contra Israel pelo assassinato de Arafat é ampla. Ressalta que os três anos de confinamento em seu quartel-general em Ramallah, na Cisjordânia, pelas tropas de Israel foram, no mínimo, uma maneira eficiente de minar as forças do irmão, que viu pela última vez em 2002. Ele tem teorias para a misteriosa deterioração das condições vida do líder palestino.

¿ Tentaram matar meu irmão de diversas maneiras, não apenas com o confinamento. Se você imaginar que até o abastecimento de água em sua base era controlado por Israel, não fica muito difícil desconfiar que algo sinistro se passou. Há venenos que matam de imediato, ao passo que outros trabalham vagarosamente.

Mohse diz ter ficado ainda mais incomodado com as atitudes de Israel durante a internação de Arafat num hospital de Paris. Lembra que mesmo notícias sobre melhoras em seu quadro de saúde eram ignoradas pelo governo de Ariel Sharon. E, embora guarde um grande ressentimento do apoio americano a seu principal aliado no Oriente Médio, o dentista ainda acredita que Washington é o principal trunfo para a estabilização da região.

¿ Todos precisamos da ajuda dos EUA, pois o problema da Palestina também alimenta o terrorismo. O Ocidente precisa se convencer de que a solução de nossa causa ajudaria a termos um mundo mais seguro. Somos o coração do problema no Oriente Médio ¿ diz.

E, ao contrário de compatriotas que celebraram a retirada israelense da Faixa de Gaza, Mohse se mantém cético a respeito das intenções de Israel.

¿ Até a Alemanha conseguiu se reunificar, mas nosso povo continua separado e espalhado pelo mundo. E o que adianta Israel dizer que se retirou de Gaza quando está construindo um baita muro em torno da região? É como dizer que os palestinos estão livres, mas num quarto sem janelas ou portas ¿ diz.

Mohse também se mostra bastante crítico com a atual administração palestina, que a seu ver está fazendo muitas concessões em troca de poucos favores. E cita conversas com compatriotas para dizer que a paciência dos palestinos com seus governantes está diminuindo.

¿ Digo isso sem medo do que possa acontecer. Uma das principais coisas que aprendi com Yasser é que não devemos ter medo de falar ao mundo sobre a situação de nosso povo. Até porque, do jeito que as coisas estão, todos os palestinos são alvos, independentemente do nome ou sobrenome ¿ diz o dentista, antes de deixar o saguão do hotel, com passos rápidos e olhares de reconhecimento enquanto se mistura aos transeuntes numa das ruas do centro de Abu Dhabi.

www.oglobo.com.br/mundo