Título: DIRCEU VERSUS LULA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 08/12/2005, O País, p. 4

O relacionamento aparentemente cordial entre o presidente Lula e o deputado cassado José Dirceu já dá sinais importantes de deterioração, o que pode ter conseqüências sérias para a campanha de reeleição. Nada indica que Dirceu esteja disposto a subir no mesmo palanque de Lula, como o presidente anunciou ontem, a persistirem as linhas atuais da política econômica. E talvez por isso mesmo o presidente dê sinais tão desencontrados sobre eventuais alterações no modelo. Talvez por isso também Lula tenha incensado tanto Dirceu, reafirmando que ele foi responsabilizado injustamente por uma prática ¿ o mensalão ¿ que não foi provada.

Ao mesmo tempo, José Dirceu, mesmo fora do governo, ou até por causa disso, começa a verbalizar as reivindicações dos chamados movimentos sociais, que, por sua vez, divulgaram nos últimos dias diversos relatórios com críticas ao governo de Lula. A distância é cada vez maior entre o presidente que conta ao telefone a George W. Bush os avanços de sua política social com base nos dados do Pnad, e os movimento sociais que, no relatório do Ibase divulgado ontem, atribuem ao ¿modo de fazer política predominante no governo Lula e às alianças daí emergentes ¿ juntamente com a política macroeconômica, que é, ao mesmo tempo, sua conseqüência e sua expressão¿, a limitação à participação da sociedade civil no governo federal.

O ex-todo poderoso Dirceu, em entrevista à revista de esquerda ¿Fórum¿, ligada ao Fórum Social Mundial, lembra experiências como a de Allende no Chile, a de Jango, a dos sandinistas na Nicarágua, e alguns governos de esquerda na Europa para justificar a frase que um manifestante chileno exibiu em um cartaz: ¿É um governo de merda, mas é o meu governo¿.

Dirceu explica o que deveria ter sido feito: ¿Primeiro, vamos tentar o governo; segundo,vamos disputar o governo internamente; terceiro, vamos mobilizar a sociedade contra as políticas que consideramos conservadoras; quarto, vamos criar alternativas para o governo avançar¿.

Pela primeira vez Dirceu explicita suas divergências com o projeto do ministro da Fazenda, Antonio Palocci: ¿Tínhamos uma idéia de promover um ajuste fiscal e monetário, depois uma transição, e em seguida um projeto de desenvolvimento. De certa forma, ficamos no ajuste fiscal e monetário e iniciamos um processo de transição, criando alguma base para um projeto de desenvolvimento. Mas tanto esse processo quanto a transição foram abortados em determinado momento¿, diz ele.

Esse momento, para Dirceu, chegou no fim de 2004, quando o governo decidiu ¿reduzir a banda de inflação, não diminuir a TJLP, não abaixar os juros e aumentar o superávit. Isso significa uma inflexão definitiva para outra política. Quando a opção do presidente é clara em relação ao caminho que o ministro Palocci sempre defendeu, eu devia ter saído¿, lamenta José Dirceu.

O papel do PT é outra fonte de amargura para Dirceu. Ele diz que se continuasse à frente do partido em vez de assumir a chefia da Casa Civil ¿se criaria uma situação de impasse e rompimento¿. Ele acha que houve uma incompreensão quanto ao papel do partido e dos movimentos sociais com relação ao fato de chegar ao poder um governo de esquerda como o de Lula: ¿Isso não significa não fazer luta, não pressionar, não fazer greve, não fazer ocupação, não combater as políticas de que se discorda¿, diz, fazendo uma mea-culpa.

¿Faltou de nossa parte ¿ é um dos cinco, seis grandes erros que costumo apontar ¿ mais empenho nesse diálogo e nessa relação. Na verdade, nunca ficou muito claro que a gente fazia isso no governo, e o PT acabou não fazendo também. E faltou também da parte dos movimentos buscar mais os governos¿.

Em dois momentos, Dirceu não resiste a uma análise mais cáustica sobre o presidente Lula. Quando fala de sua saída da articulação política do governo, diz que saiu por que se deu conta de que ¿o presidente queria que eu saísse¿. ¿Problema pessoal?¿ pergunta o entrevistador, e Dirceu não deixa passar: ¿Uma mistura de coisas. O personagem é difícil, está ficando claro isso¿.

E, no fecho de ouro da entrevista, perguntado se Palocci não estaria retardando o surgimento de um governo de esquerda, Dirceu responde: ¿É uma opção que o presidente fez. Ele é assim, fez uma opção pela segurança e pela estabilidade¿. ¿O senhor faria diferente?¿, pergunta o jornalista. E Dirceu: ¿Eu faço, fazia o que o presidente decidia. Eu não era presidente, era ministro, tanto é que ele me demitiu quando precisou¿.

Para Dirceu, Palocci quer aprofundar o ajuste, com maior abertura comercial, CPMF fixa, ainda que com alíquota decadente, 5% de superávit, despesa corrente fixa, Banco Central independente. E dá sua opinião: ¿Isso é inviável para um governo forte, com maioria, ainda mais com um governo que está enfrentando um processo de desestabilização, com a oposição saindo dos marcos democráticos¿.

Os movimentos sociais, que Dirceu quer mobilizar, começam a manifestar sua insatisfação em relação ao governo Lula. Ontem, o projeto Mapas ¿ Monitoramento Ativo da Participação da Sociedade ¿ coordenado pelo Ibase, divulgou relatório em que diz que ¿a partir do momento em que o governo Lula optou por alianças com os setores políticos e econômicos dominantes, revertendo prioridades historicamente assumidas pelo PT, a proposta de um modo participativo de fazer política que fortalecesse os espaços públicos de participação teve de ser abandonada¿.

A conclusão é que ¿como o governo Lula optou por caminho diferente, e a crise do próprio PT fragilizou seu papel como canalizador e institucionalizador de diferentes movimentos sociais, o resultado pode vir a ser muito diverso, colaborando para uma dispersão ainda mais acentuada das lutas sociais¿.