Título: SEM AS BASES
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 09/12/2005, O País, p. 4

Na campanha eleitoral que o elegeu presidente em 2002, o então candidato Lula prometeu combater a corrupção e, naquele exagero que hoje faz com que já não se leve a sério muita coisa do que diz mas que, naquela altura, soava aos ouvidos dos brasileiros como sinal de mudanças, disse que sua simples presença no Palácio do Planalto faria os níveis de corrupção caírem imediatamente.

Três anos depois, cercado por uma série de denúncias de corrupção que ceifou quase uma centena de ministros e auxiliares dos mais diversos escalões, inclusive o seu ¿núcleo duro¿ decisório, a Transparência Internacional, seção Brasil, divulga um relatório no Dia Internacional de Combate à Corrupção com o sugestivo título ¿Nada a comemorar¿.

É impressionante como Lula chega ao fim de seu mandato, na tentativa de reeleição, deixando para trás praticamente todos os movimentos sociais que um dia foram seu principal sustentáculo político. Fica cada vez mais claro que sua candidatura em 2006 se baseará na política econômica que é rejeitada pelos tais ¿movimentos sociais¿ e nos programas assistencialistas tipo Bolsa Família. O presidente que se elegeu com os votos da classe média e das grandes cidades, está indo em direção aos grotões

A Rede Social de Justiça, que reúne as principais ONGs ligadas aos direitos humanos, acusou o governo de ter falhado em todas as metas, desde o combate à fome até a reforma agrária, da situação do meio ambiente à geração de empregos. E anunciou que não estará ao lado de Lula na campanha de reeleição, afirmando que a herança do próximo governo, seja ele qual for, será ¿explosiva¿.

Relatório do Ibase, o instituto de análises econômicas e sociais fundado pelo sociólogo Betinho, do qual já falei ontem, também é cheio de críticas à ineficiência do governo e às suas opções econômicas. O processo de consultas do Plano Plurianual (PPA) resultou, para o Ibase, ¿largamente decepcionante¿, pois, além de problemas de desorganização, logística, continuidade e legitimação, entre outros, o PPA foi ¿submetido pelo governo federal à lógica do superávit primário, e acabou não contribuindo para a construção anunciada de um projeto de desenvolvimento nacional ¿ fundamentado em um novo pacto social includente ¿ cuja prioridade foi esmaecendo com o passar do tempo¿.

Também as conferências setoriais (cidade, meio ambiente e segurança alimentar) redundaram em ¿resultados pouco efetivos¿. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), segundo o relatório, ¿foi concebido, na verdade, não como um espaço público de participação, mas como um lugar onde a Presidência da República poderia estabelecer uma interlocução privilegiada com representantes do capital e do trabalho, por ela escolhidos¿ e se caracterizou ¿por uma desigualdade de representação a favor dos empresários e de membros oriundos da Região Sul do país¿.

A recriação, a nível nacional, do Conselho de Segurança Alimentar (Consea) e a criação do Fome Zero foram prejudicadas pela ¿prática política do governo federal, expressa na manutenção da política macroeconômica neoliberal e no modelo de desenvolvimento socialmente excludente e calcado nas exportações do agronegócio¿. Essa situação ¿transformou em retórica a possibilidade efetiva de tornar a segurança alimentar e nutricional uma prioridade na agenda governamental¿, segundo o Ibase.

Hoje, a Transparência Internacional, uma das ONGs mais ligadas à lutas dos partidos de esquerda, considera que, no Dia Internacional de Combate à Corrupção, ¿não se pode afirmar que os brasileiros tenham muitos motivos para celebrar¿. Segundo o relatório, ¿o desenrolar do escândalo Correios/mensalão tem exibido mais a intenção de escamotear fatos e ocultar origens do que propósitos de exibir os mecanismos da corrupção para prevenir a continuidade de sua ocorrência¿.

Para a Transparência, uma das verdadeiras origens da corrupção é a liberdade de nomeação de pessoas para ocupar os cargos de confiança, que superam 20 mil só no poder Executivo federal. O governo anunciou várias vezes que enviaria um projeto ao Congresso reduzindo drasticamente os cargos de confiança, mas até agora nada aconteceu.

Ao contrário, diz o relatório da Transparência Internacional, mesmo depois dos escândalos envolvendo órgãos públicos, ¿tem sido parte dos esforços do Palácio do Planalto em recompor a sua base parlamentar a barganha de cargos por apoios ¿ para isso empreendendo negociações e oferecendo cargos aos mesmos protagonistas do escândalo, vários deles já cassados ou que renunciaram para não ser cassados¿.

Também os mecanismos de elaboração orçamentária das três esferas de poder, e a não-obrigatoriedade de cumprimento dos orçamentos, são apontados como causadores do ¿desvirtuamento das relações políticas e a realização de negociatas ligadas tanto ao planejamento dos investimentos quanto à liberação de verbas¿.

O documento chama a atenção para ¿o alto de grau de ineficiência administrativa da maioria dos estados e municípios brasileiros, que conduz à elevada incidência de corrupção nesses âmbitos¿. A persistir esse estado de coisas, diz o relatório da Transparência Internacional, ¿o desperdício do dinheiro público por simples ineficiência e, não raro, por roubalheira, prosseguirá intocado¿.

O relatório da Transparência cita ainda ¿a descoordenação dos mecanismos de prevenção e controle e o mau trânsito das informações entre eles no que tange a dados bancários e fiscais¿, a falta de orçamento adequado para os organismos de controle e práticas ¿de tal modo absurdas¿ que os controladores internos de empresas estatais são, também, eles, indicados politicamente. ¿Nunca se materializou de forma tão perfeita a imagem da raposa posta a vigiar o galinheiro¿, afirma o relatório.