Título: A OFENSIVA DOS FUNDAMENTALISTAS
Autor: JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES
Fonte: O Globo, 10/12/2005, Opiniao, p. 7

Oescritor americano F. Scott Fitzgerald escreveu, certa vez, que ¿os ricos são diferentes de mim e de você¿. O seu colega Ernest Hemingway concordou dizendo: ¿São mesmo, eles têm mais dinheiro.¿ Ironia à parte, os ricos, exatamente, por terem mais dinheiro, têm acesso ¿ comprando no mercado de bens e serviços ¿ a diversos direitos de cidadania que não estão disponíveis aos pobres.

No que tange à saúde reprodutiva, ao revés do que acontece com as parcelas pobres da população, os ricos têm acesso a uma ampla gama de métodos para praticar o sexo seguro e para regular a fecundidade, como a camisinha, o DIU, a pílula, a injeção, o diafragma, a laqueadura, a vasectomia, a pílula de emergência etc. Por terem atingido melhores condições educacionais, os ricos também sabem utilizar corretamente os métodos contraceptivos naturais, como a tabelinha, o método Billing e o coito interrompido.

Os ricos também têm acesso, caso algum destes métodos falhe, ao aborto seguro feito em clínicas sofisticadas e caras que fazem uso de ultra-som, sedativos, anestesia e adotam as técnicas de sucção de última geração. Raramente uma mulher rica engrossa as estatísticas da mortalidade materna, em primeiro lugar, porque consegue evitar a gravidez indesejada, em segundo lugar, porque tem meios eficazes para realizar a interrupção voluntária da gestação.

Ao contrário, os pobres ¿ por terem insuficiência de renda e parco acesso à educação de qualidade ¿ não possuem os meios adequados para ter uma vida sexual plenamente sadia e acesso irrestrito aos métodos de regulação da fecundidade. A parcela pobre da população brasileira não tem autonomia para separar, efetivamente, a sexualidade da reprodução.

Para mudar esta história e tornar disponíveis os direitos sexuais e reprodutivos estabelecidos na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo em 1994, e do qual o Brasil é signatário, o Estado precisa suprir os direitos de cidadania de modo a corrigir as imperfeições do mercado e a promover a inclusão das parcelas que estão sem acesso à saúde reprodutiva.

Uma boa iniciativa neste sentido poderia ter sido a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos, que foi elaborada pelo Ministério da Saúde e lançada no dia 22 de março de 2005, tendo três eixos principais de ação: a ampliação da oferta de métodos anticoncepcionais reversíveis (não-cirúrgicos), a melhoria do acesso à esterilização cirúrgica voluntária e a introdução de reprodução humana assistida no Sistema Único de Saúde (SUS). Contudo, esta política ficou apenas no papel, pois, por falta de recursos e por deficiências na distribuição, os postos de saúde dos municípios brasileiros continuam sem meios para atender à demanda da população pobre do país.

As mulheres de baixa renda no Brasil também são as principais vítimas da prática de abortamentos clandestinos ¿ grave problema de saúde pública, responsável pela quarta causa de mortalidade materna e pelo alto índice de morbidade. O aborto por curetagem em condições precárias causa inúmeras complicações, como a perfuração do útero, a hemorragia e diversos tipos de infecção, agravando as condições de saúde das mulheres e provocando um alto custo para o sistema público de saúde.

Para tratar deste grave problema, foi instalada, em 6 de abril de 2005, uma Comissão Tripartite para Revisão da Legislação Punitiva sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez, integrada por dezoito representantes dos Poderes Executivo e Legislativo e da sociedade civil. Os trabalhos da Comissão Tripartite resultaram na elaboração de um projeto de lei que deve ser votado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.

O projeto permite que as mulheres optem pelo aborto até a 12ª semana de gestação, sem precisar justificar o motivo, e até a 20ª semana, se a gravidez for conseqüência de estupro. Em casos de anencefalia ou de risco para a gestante, o aborto poderia ser realizado a qualquer momento. Se aprovado, o projeto passará pela Comissão de Constituição e Justiça antes de ir a plenário.

Todavia, tanto a Política de Direitos Sexuais e Reprodutivos quanto o projeto da Comissão Tripartite estão sob ataque do fundamentalismo religioso, que é contra a distribuição de camisinhas, os métodos anticoncepcionais modernos e contra a legalização e a descriminalização do aborto. Porém, o Estado laico não pode ficar à mercê dos dogmas religiosos e deve garantir a liberdade de escolha. A proibição e a omissão do Estado são fatores que agridem os direitos reprodutivos e agravam as condições de pobreza, condenando milhões de brasileiros a conviver com o preconceito e a fatalidade.

JOSÉ EUSTÁQUIO DINIZ ALVES é professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE .