Título: Longe do sonho
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Fonte: O Globo, 12/11/2004, O mundo, p. 30

Deixando para trás dúvidas sobre o futuro de um estagnado processo de paz, o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Yasser Arafat, morreu na madrugada de ontem, aos 75 anos, em Paris, longe das terras pelas quais lutava há quatro décadas, e sem realizar o sonho de sua vida: criar um Estado para os palestinos. Seu corpo foi levado para o Cairo, onde será realizado hoje um funeral. Mas será enterrado em Ramallah, na Cisjordânia, onde o líder passou os últimos três anos isolado por Israel, que rejeitava sua liderança, com apoio do presidente George W. Bush.

Arafat passara duas semanas internado num hospital em Paris, em meio a relatos confusos sobre seu estado de saúde, que a cada dia piorava. Sua morte causou comoção no mundo árabe, mas não houve tristeza entre autoridades israelenses como o ministro da Justiça, Yosef Lapid, que se recusou a dar pêsames aos palestinos:

¿ Eu o odiava pela morte de milhares de israelenses. Eu o odiava por impedir acordos de paz entre nós e os palestinos. É bom que ele tenha ido. É bom que tenha deixado o mundo e o Oriente Médio.

Para Israel, trata-se do fim de um obstáculo à paz desejada por israelenses e palestinos, há décadas mergulhados num conflito que já fez dezenas de milhares de vítimas. Por outro lado, a morte de Arafat não afastou temores de que uma luta por poder nos territórios palestinos possa aprofundar a crise na região. Como previsto pela lei, o presidente do Parlamento palestino, Rawhi Fattouy, assumiu a presidência da ANP e deverá organizar eleições em 60 dias. Mas como o líder não indicou sucessor, moderados e linhas-duras poderão entrar em disputa.

O primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, prometeu levar adiante seu plano de pôr fim a colônias judaicas em Gaza. Para ele, a morte de Arafat pode representar ¿um momento de decisão¿ para a paz, se seus sucessores puserem fim à violência. Bush enviou uma mensagem semelhante:

¿ Esperamos que o futuro traga paz e a realização de aspirações por uma Palestina independente, democrática e em paz com seus vizinhos.

O governo israelense rapidamente fechou, entretanto, as fronteiras com Cisjordânia e Faixa de Gaza, temendo uma explosão de violência. Em comunicado, o Hamas, um dos mais ativos grupos radicais palestinos, jurou destruir Israel e intensificar sua campanha de atentados suicidas: ¿A perda do grande líder aumentará nossa determinação e estabilidade para continuar a jihad (guerra santa) e a resistência ao inimigo sionista até a vitória e a libertação serem alcançadas¿.

E a rotina de confrontos se manteve. Palestinos atacaram um assentamento judeu em Gaza. Israel matou pelo menos quatro palestinos.

O corpo de Arafat foi levado de helicóptero do hospital militar de Percy para uma base aérea nos arredores de Paris, de onde seguiu para o Cairo. Ao lado do primeiro-ministro da França, Jean-Pierre Raffarin, Suha, viúva do líder, chorou quando, ao som da ¿Marcha fúnebre¿, de Chopin, oitos membros da Guarda de Honra puseram o caixão do marido ¿ coberto com a bandeira palestina ¿ no Airbus da Presidência francesa. Diversos embaixadores árabes acompanharam a cerimônia, e cerca de 300 simpatizantes da causa palestina foram até a base se despedir de Arafat.

Caixão ficará sob terra de Jerusalém

No funeral no Cairo, países árabes serão representados por chefes de Estado, mas a maioria dos países ocidentais enviou ministros do Exterior. Israel não enviou representante.

Arafat será enterrado num mausoléu na Muqata, seu QG semidestruído por ataques israelenses. A ANP declarou luto nacional de 40 dias e informou que o corpo ficará sob terra vinda de Jerusalém, num caixão de cimento, para que possa ser removido para aquela cidade, um desejo do líder que Israel se recusa a realizar.

Há dias à espera de notícias de Arafat em frente à Muqata, Khalik Rimawi, de 21 anos, traduziu, trêmulo, um sentimento de idolatria misturada a desamparo que poderá se intensificar entre os palestinos:

¿ Com a perda de nosso presidente, perdemos toda a crença e confiança que poderemos ter em qualquer pessoa que venha depois dele. Ele era o símbolo dos palestinos e da causa palestina. Quando ele falava, era como se toda a nação falasse.