Título: Mais da metade dos índios vive nas cidades
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 14/12/2005, O País, p. 12

Empregos e serviços em áreas urbanas atraíram população indígena, mas favelas são o destino da maioria, diz IBGE

RIO E SÃO PAULO. Um estudo do IBGE está sepultando de vez a expressão silvícola, usada durante décadas, para designar índio brasileiro (¿Quem nasce ou habita as selvas¿). Ao comparar os resultados dos censos demográficos de 1991 e 2000, o instituto concluiu que mais da metade da população indígena do país já vive em áreas urbanas, atraída pela oferta de empregos e de serviços, principalmente no campo da saúde. As condições de vida destes índios, também reveladas pela pesquisa, indicam que eles estão ocupando submoradias, como favelas e palafitas.

¿ O estudo tirou este índio da invisibilidade ¿ comenta a estatística Nilza Martins Pereira, uma das responsáveis pela pesquisa do IBGE.

O trabalho, inédito no Brasil no que diz respeito a tendências demográficas da população indígena, informa que, em 1991, 75,9% dos índios brasileiros habitavam a área rural e apenas 24,1% a urbana. Uma década depois, a população autodeclarada indígena praticamente estava dividida entre cidade e campo, com um ligeiro predomínio na área urbana (52,2% contra 47,8% dos índios rurais). Do total de 734 mil índios do Brasil, 383 mil moram em áreas urbanas e 350 mil em áreas rurais.

Maioria não tem qualificação

São grupos isolados, famílias ou pessoas, grande parte procedente do Nordeste, vivendo em grandes centros urbanos, buscando sua sobrevivência por conta própria. A maioria não tem qualquer qualificação profissional, razão pela qual trabalha na construção civil, emprego doméstico, biscates ou produz artesanato para vender. O IBGE constatou que 70% da população indígena urbana mora há mais de dez anos nas cidades.

¿ Quando cheguei ao Rio, me senti perdida. Passei um sufoco atravessando aquele buraco sem fim. Ao sair, a surpresa foi maior. Dei de cara com aquelas casinhas, umas em cima das outras ¿ disse Maria da Graça Xavier Krikati, referindo-se ao túnel Zuzu Angel e à Rocinha, onde se instalou nos primeiros três meses de Rio de Janeiro.

Maria da Graça chegou do Maranhão há exatos 10 anos para trabalhar como empregada doméstica. Três anos depois, conheceu José Guajajara, um índio que também migrou de aldeia maranhense. Hoje, estão envolvidos num projeto de resgate da cultura tradicional dos índios que se urbanizaram, o Centro de Arte e Cultura, dirigido pelo casal na favela Parque Nova Maracá, em frente à estação do metrô de Tomás Coelho.

¿ Nosso centro é freqüentado por pataxós, fulniôs, guaranis, tukanos, apurinãs e guajajaras. Muitos, infelizmente, já esqueceram a língua nativa. Mas agora se esforçam para recuperar a tradição ¿ disse José Guajajara.

O esforço terá de ser grande. A antropóloga Maria Elizabeth Bréa, da Fundação Nacional do Índio (Funai), explicou que o índio que saiu para trabalhar na construção civil e aquele que se autodeclarou mantém um vínculo difuso, remoto, quase lendário, com as suas aldeias natais.

Até a pesquisa divulgada ontem, pouco se conhecia sobre a distribuição geográfica dos índios urbanos. Estudos da Conselho Missionário Indigenista (Cimi), da igreja católica, em Manaus, por exemplo, viveriam entre 10 e 30 mil índios de vários povos. Porém, embora a Região Norte ainda concentre 29,1% da população indígena (2000), a pesquisa registrou aumento das participações relativas das regiões Sudeste e Nordeste.

A população indígena do Sudeste, por exemplo, cresceu cinco vezes nos últimos dez anos e já representa 22% do total, superando a do Centro-Oeste, 104.360 (14,2%), onde fica o Parque Nacional do Xingu (MT). Na lista das 20 cidades com maior proporção de índios, figuram dez capitais brasileiras. A lista é encabeçada por Salvador, com 18 mil indígenas autodeclarados. São Paulo, Rio de Janeiro, Manaus, Belo Horizonte e Brasília estão entre os dez primeiros.

Nas cidades, os indicadores estão sempre abaixo da média dos demais brasileiros que vivem em cidades. Se ficar no segmento cor e raça, estão em desvantagem. Até na comparação com os índios rurais, as taxas são inferiores. A taxa de mortalidade infantil do índio urbano, por exemplo, é mais alta do que a do índio rural.

Mas isso ainda não motivou políticas públicas para este tipo de índio. O médico epidemiologista Andrey Moreira Cardoso, que trabalha com a questão indígena desde em 1996, disse que a atual Política Nacional de Saúde Indígena prioriza atuação somente à população aldeada.

¿ Cabe nesse momento uma reflexão sobre a organização da atenção básica nas áreas urbanas, como por exemplo, o Programa de Saúde da Família, que poderia contemplar os indígenas urbanizados.