Título: UM PAPA SEVERO?
Autor: LUIZ PAULO HORTA
Fonte: O Globo, 17/12/2005, Opinião, p. 7

Bento XVI é um papa até agora bem discreto. Isso é o que se poderia chamar de refreshing, e não deixa de ser um patrimônio da Igreja Católica. Um papa não precisa ser o clone do anterior, e, embora ele tenha compromisso com a divulgação da fé, também não precisa ser um garoto-propaganda.

A verdade é que a personalidade dos papas varia bastante. João XXIII, por exemplo, veio com a missão de ¿abrir¿, de ¿aggiornar¿, depois da fase hierática de Pio XII. Paulo VI ficou num meio-termo. João Paulo II, em diversos momentos, teve de pisar no freio no sentido de reafirmar algumas verdades da fé. É possível que a linha de Bento XVI também seja essa ¿ talvez um pouco mais austera por se tratar de um papa mais velho, e alemão.

Veja-se a famosa questão da camisinha, que agora voltou à tona com o episódio Daniela Mercury. É chato convidar e depois desconvidar. Mas, nessa história, estão em jogo algumas questões de princípio, e nesse terreno sempre pode haver choque entre as posições da Igreja e as do chamado mundo moderno.

Quando a Igreja diz que é contra a camisinha, ela está defendendo um princípio. Significa dizer que o sexo não é um esporte, e que a sua função não é só dar prazer. Mais que isso: significa que o sexo não está separado da vida espiritual; que, se você quer progredir nesse terreno, também o sexo precisará ser integrado numa visão mais ampla ¿ aquela que diz que o mundo é uma criação divina; que o sagrado não deixa nada fora da sua área de influência. Também o sexo pode colaborar para o desenvolvimento espiritual, porque ele é um mistério que se liga diretamente ao Amor; um espaço onde o terreno e o divino se entrelaçam da maneira mais extraordinária.

Se entra a camisinha, todo entrelaçamento vai embora: fica só o físico, o prazer carnal.

Você dirá: e a Aids? Aí, já não estamos falando de princípio, e sim de prática. O brasileiro de 2005 despreocupado de temas religiosos certamente levará em conta a Aids, se for muito promíscuo, e usará camisinha. Em que é que a Igreja atrapalha?

E o católico? O católico agirá de acordo com a sua consciência. Dizem que 90% dos católicos usam a camisinha. De novo: em que é que a Igreja atrapalha? O que acontece é que, se você é um católico praticante, você porá na balança a palavra da Igreja, que é Mãe e Mestra.

Nesse ponto, as opiniões ¿ e as práticas ¿ variam. Conheço católicos (os tais 90%) que nunca deram muita bola para isso. Outros deram bola; e, na dúvida, foram conversar com o padre. Tem padre que fecha os olhos, dependendo do caso, para o uso da camisinha.

O que eu sei é que, se você é um pai católico, e tem filhos em idade de transar, dificilmente você dirá a eles: não use em hipótese alguma a camisinha. Você sabe de que modo as coisas estão acontecendo. Mas se você tem um bom diálogo com o seu filho, você poderá explicar a ele o que é que está em jogo, na palavra da Igreja; e o seu filho, quando tiver um relacionamento estável, poderá levar isso em conta.

Tudo isso envolve algumas sutilezas; e a época está longe de ser fácil. O que não é sutil é a maneira como as pessoas confundem as coisas e os planos. Agora, por exemplo, voltou a artilharia antiIgreja, por conta da camisinha. Dá a impressão de que a Igreja está nas ruas fazendo propaganda contra a camisinha.

Propaganda existe, sim, por parte da república laica. Ela faz questão de acentuar que não há mistura entre assunto civil e assunto religioso. Talvez não haja, mesmo. Mas não precisamos exagerar. A convicção dos outros também conta. É curioso ver ministros de Estado saírem dos seus cuidados para passar pito no Papa. O Papa está defendendo os seus princípios. Até que ponto os ministros e os políticos de hoje são fiéis aos seus princípios?

Nesse ponto, talvez pudéssemos dar uma olhada nos nossos irmãos judeus ¿ nossos irmãos mais velhos. Um dia, eles receberam a Torá ¿ a Lei ¿ do alto de uma montanha da Palestina. Sendo uma lei muito antiga (e às vezes antiquada), seria normal que ela já tivesse caducado. Não caducou ¿ e este é certamente um dos grandes mistérios do mundo. O judeu ortodoxo venera a Torá como ele ama a própria vida. E olhe que a Torá é exigente!

A Lei cristã é bem mais fácil. O Cristo quis fazê-la mais leve. E, hoje, as exigências da Igreja para o dia-a-dia se resumem quase a um mínimo.

De novo: e a camisinha? Pois é, se você é um fiel observante, você procurará fazer o que diz a Igreja. Usando, por exemplo, os métodos naturais de controle da natalidade. Difícil? Inexeqüível? Nem tanto. Conheço gente que faz isso, sem precisar andar por aí com cinza na cabeça. É o preço que se paga por outras compensações. Como disse santo Afonso de Liguori, ¿por mais que Ele custe, Deus nunca é caro¿.

LUIZ PAULO HORTA é jornalista.