Título: Lembranças dos anos rebeldes
Autor: Chico Otavio
Fonte: O Globo, 19/12/2005, O PAÍS, p. 4

CRISE POLÍTICA: O EX-MINISTRO ADMITE QUE NUNCA LEU `O CAPITAL¿, DE KARL MARX

Dirceu grava depoimento e diz que, na clandestinidade, lançou moda no Paraná

Dias atrás, ao pedir ao governo cubano fotos suas em treinamento militar, para enriquecer o arquivo que está montando, o ex-deputado José Dirceu ouviu uma carinhosa reprimenda de Fidel Castro. ¿ Que isso! Está ficando pendejo? ¿ teria reagido o chefe de Estado cubano, negando-se a atender o pedido. A expressão espanhola pendejo, como o próprio José Dirceu explicou, significa pessoa frouxa, boba. Mesmo sabendo que, dificilmente, convenceria o governo de Fidel a ceder-lhe fotos de seus treinamentos com armas e bombas, o que provaria a existência em Cuba de centros de treinamento de atividades terroristas, ele fez o pedido. A história foi contada durante uma manhã de gravações num pequeno estúdio da Gávea. Seus relatos revelam que o coração daquele que era considerado o impiedoso, inflexível e arrogante homem forte do governo Lula está amolecido. Em quase quatro horas de depoimento sobre o movimento estudantil, Dirceu dividiu temas políticos com seus amores e paixões, o agito cultural dos anos 60, a necessidade de uma nova cirurgia plástica, desta vez por motivação estética, e até de moda. Com surpreendente paciência e bom humor, Dirceu gravou seu depoimento para o projeto Memória do Movimento Estudantil, ao fim de uma temporada de quatro dias no Rio. Não se incomodou em repetir frases ou se ajeitar melhor na cadeira, quando necessário. Num intervalo, fez alongamento para braços e pernas. Em mais um recomeço de vida, o ex-deputado disse que está contratando uma empresa para organizar os seus arquivos pessoais e gostaria de incluir as fotos do exílio cubano. Ele não quer deixar o acervo na Fundação Perseu Abramo, do PT, pois teme que a crise financeira do partido, que prevê durar por três anos, afete seu projeto. Parte está na Unicamp, parte no PT e outra, sobre a sua passagem pelo governo, já com ele, retirada dos arquivos da Casa Civil da Presidência da República. Além das histórias já conhecidas de sua militância no movimento estudantil, que culminou com a prisão em Ibiúna (1968), Dirceu citou episódios reveladores de sua personalidade. Lembrou, por exemplo, que nos primeiros meses de juventude em São Paulo foi discriminado por ter sotaque mineiro. O ex-presidente da União dos Estudantes de São Paulo garante que, apesar da luta contra a repressão política e contra os estudantes conservadores da Universidade Mackenzie, era possível ser revolucionário e sofisticado ao mesmo tempo, promovendo até bailes no Beco, uma boate chique de São Paulo. Dirceu também contou, em detalhes, suas aventuras amorosas nos anos 60, uma delas transformada pelos amigos em motivo de deboche. Na época, ele se interessou por uma jovem da PUC, que se chamava Heloísa (não se recorda do sobrenome), ou Maçã Dourada, que mais tarde descobriu-se ser uma agente infiltrada no Dops. ¿ Paguei o maior mico. Chegaram a fazer uma musiquinha de gozação. O ex-deputado também admitiu nunca ter lido, por completo, ¿O capital¿, de Karl Marx, considerado uma espécie de bíblia das esquerdas da época. ¿ Não li. Sou uma mistura de positivismo, formação marxista vulgar e experiência de vida. Vaidoso, nega sem muita convicção a fama de bonito. Em seguida, explica: ¿ Realmente, tinha um tipo físico que era um padrão de beleza no mundo todo. Sabia que era especial. Dirceu falou até da loja de moda que abriu em Cruzeiro do Oeste, no Paraná, nos tempos da clandestinidade. ¿ Montamos uma alfaiataria linda, Magazine do Homem. Fui pioneiro das marcas Ellus, Staroup e Lee na região.