Título: 'MEU PARTIDO NASCEU DE UMA FOLHA DE COCA'
Autor: Janaína Figueiredo
Fonte: O Globo, 21/12/2005, O Mundo, p. 31

Evo Morales confirma viagem ao Brasil em janeiro e promete auditoria na Petrobras

ENTREVISTA

EVO MORALES

Presidente eleito da Bolívia, Evo Morales fala com entusiasmo da viagem ao exterior que fará em breve, com escala no Brasil, um sócio estratégico de seu país. "Confirmamos um encontro com o presidente Lula. Ainda não sabemos a data, mas será antes da posse (dia 22 de janeiro)", diz ao GLOBO o líder de plantadores de coca. Para reforçar as alianças internacionais, ele pretende visitar ainda Espanha, França, África do Sul e talvez China. Em sua mesa, há um punhado de folhas de coca. "O MAS (seu partido) nasceu de uma folha de coca", afirma.

O senhor já prepara sua primeira viagem ao exterior como presidente eleito da Bolívia. Um dos destinos será o Brasil?

MORALES: Recebi muitos convites e já está confirmada uma visita no dia 9 de janeiro à África do Sul. Ontem também confirmamos um encontro com o presidente Lula. Ainda não sabemos a data, mas será antes da posse (marcada para 22 de janeiro). Ontem recebi também um telefonema do presidente (José Luis) Zapatero, da Espanha, eu o convidei para a posse e ele me pediu que fosse visitá-lo. Tenho também uma reunião pendente com o governo chinês. Tenho enorme amizade e respeito por (Hugo) Chávez e Fidel (Castro). Mas ainda não temos convite, certamente teremos algum encontro.

O senhor falou com o presidente Lula?

MORALES: Sim, e ele me prometeu apoio.

Seus adversários afirmam que um governo do MAS poderia afastar novos investimentos.

MORALES: Veja bem, graças ao resultado de 2002 (ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais) tive contatos com as embaixadas, os governos, os organismos internacionais, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional do Rato (Rodrigo Rato, diretor do FMI), ou ratón (rato em espanhol) (risos). Todos disseram que apoiarão meu governo. Lula me deu seu apoio total. Os movimentos sociais não estão sozinhos, temos muito respaldo.

Especula-se sobre sua amizade com Chávez e Fidel. O senhor será uma espécie de discípulo ou buscará um modelo boliviano de governo?

MORALES: Nossa luta é para recuperar os recursos naturais. Em todo caso, será uma combinação de todos os presidentes que lutam pela soberania, por direitos sociais. Fiquei feliz em saber que a Venezuela erradicou o analfabetismo, como Cuba. São resultados de governos revolucionários. Sou Evo e estou orgulhoso por ser o primeiro presidente indígena da Bolívia.

O senhor recebeu o apoio de mais da metade dos bolivianos. Assusta o desafio de governar?

MORALES: Claro que não, o resultado me deu mais confiança. Vai ser impossível reconstruir um país destruído nos últimos 500 anos, mas lutaremos para honrar os compromissos. Estamos dando passos importantes, criando as bases para transformar o país em democracia. Faremos uma transformação cultural, mas claro que cinco anos não são suficientes.

Nos últimos anos, o senhor esteve fortemente ligado a movimentos sociais. Como imagina a convivência com eles como presidente?

MORALES: Os movimentos sociais serão parte do governo. Nossa bancada no Congresso representará os interesses desses movimentos. Teremos trabalhadores rurais, profissionais e indígenas. Nosso Gabinete será amplo, não teremos apenas gente de gravata, também usarão roupas tradicionais, saias e não minissaias (risos). Também empresários, o movimento indígena não exclui ninguém, embora tenha sido muito perseguido. O governo Evo Morales será de todos.

Como será o relacionamento com as empresas petrolíferas, entre elas a Petrobras?

MORALES: Algumas companhias são contrabandistas (de combustíveis) e não pagam impostos. Nesses casos seremos radicais. Vamos auditar todas as empresas, a Petrobras também. Queremos demonstrar qual é o lucro. Mas não vamos expropriar nada.

Como avalia a atuação da Petrobras?

MORALES: As empresas têm direito de obter lucros, mas o Estado vai exercer seu direito de propriedade. Acho que é uma empresa estatal com sócios privados, como a Petróleos da Venezuela (PDVSA), e apostaremos em parcerias com este tipo de empresa. Vejo com bons olhos a proposta (de Chávez) de criar a Petrosul ou a Petroamérica. As estatais devem se fortalecer, queremos que a Yacimientos Petrolíferos Fiscais Bolivianos (YPFB) possa investir em seu país e no exterior. Quem sabe com sócios como a Petrobras ou a PDVSA? Os negócios devem ser entre Estados e não entre empresas.

Seu governo vai insistir na recompra das refinarias de Cochabamba e Santa Cruz, operadas pela Petrobras desde 1999?

MORALES: Sim, claro, já conversamos sobre isso e vamos recomprá-las.

Ambas estão avaliadas em US$150 milhões.

MORALES: Vamos ver, temos de analisar bem esse preço.

Seu governo pretende aumentar a exportação de gás para Brasil e Argentina. Pode exportar para o Chile?

MORALES: Primeiro mar para a Bolívia. Não é possível que dois países, irmãos, não tenham conseguido resolver este conflito.

Seu governo vai liberar o cultivo da folha de coca?

MORALES: O MAS nasceu de uma folha de coca. Temos que lutar contra o mercado ilegal, contra a cocaína. Convoco o governo dos EUA para uma aliança contra a droga e o narcotráfico. O narcotráfico não pode ser usado como desculpa pelos EUA para aumentar o controle na Bolívia. A América Latina deve se libertar da arrogância do império. Se os EUA quiserem trabalhar juntos numa nova política de combate ao tráfico, bem-vindos.

"O movimento indígena não exclui ninguém, embora tenha sido muito perseguido"

"As empresas têm direito de obter lucros, mas o Estado vai exercer seu direito de propriedade"

Legenda da foto: MORALES com o vice-presidente eleito Alvaro Garcia Linera, ao fundo: auditoria em empresas de petróleo