Título: Tática de alto risco
Autor: CARLOS LESSA
Fonte: O Globo, 23/12/2005, Opiniao, p. 7

O professor Affonso Pastore propõe separar o trigo do joio na onda de críticas ao Banco Central. O trigo seria a crítica movida pelo desejo de preservar os "sucessos obtidos pelo atual governo na gestão da política econômica daqueles que sucumbem ao canto da sereia dos apelos populistas, pondo a perder o que foi conquistado até agora". Nas últimas semanas, avoluma-se o risco de uma "virada para o populismo". R. Dornbusch e S. Edwards escreveram, em "A macroeconomia do populismo na América Latina": "A macroeconomia do populismo enfatiza o crescimento e a distribuição de renda, mas não leva em conta os riscos da inflação, do déficit público, das restrições externas e da reação dos agentes econômicos a políticas agressivas." Exorcizam agora o micropopulismo, que concorda com o controle da inflação, mas pretenderia a proteção à indústria, a elevação irresponsável de salários e a incerteza em relação às regras.

Sou um neopopulista. Não me alimento com a discussão sobre se a queda do PIB foi de 1,2%, 1% ou 0,8% no terceiro trimestre. O padrão tem sido o vôo de galinha: a sucessão de períodos de quase estagnação com surtos curtos de uma taxa melhorada. Foi o que aconteceu de 2003 a 2005. É irrefutável o desânimo na indústria e, nela, o precário desempenho da construção civil. A agricultura sofre o humor de São Pedro e as oscilações do comércio internacional.

O economista neo ou micropopulista se preocupa com a taxa de juros mais alta do planeta. Em 2005, o dispêndio com juros da dívida federal será de 145 bilhões de reais. Os impostos sobre toda a população são transferidos em cerca de 8% do PIB para os mais ricos. O professor M. Pochmann estima que mais de 70% dos juros vão para 20 mil famílias.

O neopopulista se preocupa com a brutal concentração de riqueza e renda. Considera fratura social a queda dos rendimentos do trabalho na renda nacional de 55% em 1960 para 37% em 2003. A recente PNAD registrou que os ricos pioraram em relação aos pobres - que não pioraram! Pela maneira como é calculada no Brasil, ela na verdade refletiu o achatamento da classe média. A evolução dos salários mostra a queda livre do rendimento médio dos ocupados, de 1996 a 2004. O neopopulista se assusta com um Banco Central que considera 10% o piso inferior para a taxa de juros. O BC, para manter a âncora cambial, valoriza o real e pressiona para baixo, a longo prazo, as exportações. Banqueteia o investidor internacional que busca rendimentos abundantes. Sua opção é pelo dólar mau, de curto prazo, e pela atrofia relativa do dólar bom da exportação.

O neopopulista não comunga do otimismo do secretário Joaquim Levy. Este afirmou, a pretexto de a LDO para 2006-2008 já haver fixado a meta do superávit primário, ser o presidente Lula extremamente responsável. "É a Lei." Para o Tesouro, como o pagamento de juros é sagrado e a taxa é fixada pelo Banco Central, os gastos correntes "têm de parar de crescer, ou crescer menos que o PIB". Avisa que os gastos de custeio com as políticas sociais têm que ser comprimidos, ou os investimentos em infra-estrutura continuarão sufocados: "O gasto público não é a melhor alavanca em termos de eleição", consola, à sua base.

O superávit primário tranqüiliza credores em relação à solvência a curto prazo, mas é óbvio que, se o país não conseguir crescer, não conseguirá, tampouco, pagar a dívida. As agências de rating vêm sinalizando desfavoravelmente ao Brasil pelo crescimento medíocre (e intermitente).

O neopopulista não vê no horizonte qualquer recuperação do investimento público. Tampouco percebe qualquer estímulo ao investimento privado. Hoje, o BNDES pratica a TJLP de 9,75% ao ano e não encontra a resposta desejada às suas linhas de financiamento.

É extremamente perigoso o crescimento apoiado em consumo privado sustentado por endividamento familiar. Praticamente não se expandem as vendas de não-duráveis e semiduráveis. Só houve dinamismo nas vendas de bens duráveis (eletrodomésticos, veículos e móveis). O crédito consignado aos assalariados com carteira e aos aposentados é temerário se a renda do salário e o emprego não crescem. Se a inadimplência se avolumar, haverá tendência à rápida contração no emprego e renda.

O neopopulista se preocupa com a proteção à indústria. É simétrico ao europeu ou americano que protege sua agricultura. Considera que a industrialização e o mercado interno não devam ser desmantelados por uma inserção passiva ao mundo da globalização.

O doutor Meirelles afirmou que o Banco Central mede a política econômica pelos resultados. Em 2004, ao contrastar os 4,9% com os 0,5% de 2003, afirmou que o Brasil entrava numa fase de crescimento duradouro. Em 2005, o crescimento será inferior a 3%. O ministro Palocci já prometeu 5% para 2006. O neopopulista acha que os condutores da política econômica não estão sequer interessados no trigo do professor Pastore.

CARLOS LESSA é economista e foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).