Título: NO ENCALÇO DA CIA
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Fonte: O Globo, 24/12/2005, O Mundo, p. 24

Tribunal italiano ordena prisão na Europa de 22 agentes acusados de seqüestrar clérigo

Num novo revés para o governo George W. Bush, um tribunal de Milão emitiu ontem uma ordem de prisão contra 22 agentes da CIA (agência de inteligência americana) acusados de seqüestrar um clérigo egípcio suspeito de terrorismo na capital financeira da Itália, em 2003. A ordem é válida na Europa, mas o promotor Armando Spataro disse ter pedido à Interpol (polícia internacional) que tente deter os agentes em qualquer parte do mundo. Os EUA não se manifestaram imediatamente sobre a decisão.

O caso do clérigo Hassan Mustafa Osama Nasr, que dirigia uma mesquita em Milão, representa uma das muitas investigações em países da Europa de denúncias sobre os chamados vôos secretos da CIA, em que agentes americanos teriam transportado ilegalmente suspeitos de terrorismo pelo território europeu para interrogá-los em países onde seriam torturados.

A corte milanesa suspeita que agentes da CIA tenham violado a soberania italiana, capturando Nasr e o levando para o Egito, onde ele disse ter sido torturado. A denúncia sobre o seqüestro, relatada na imprensa, enfurecera os italianos. No mês passado, promotores pediram ao Ministério da Justiça italiano que solicitasse a extradição dos agentes suspeitos, mas o ministro Robert Castelli pediu mais documentos e indicou que o pedido poderia ter motivação política, insinuando que Spataro é militante de esquerda e anti-EUA. Castelli ainda não tomou qualquer decisão.

Acordo para prisão em países da UE

Terça-feira, o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi, afirmou não acreditar que agentes da CIA tenham seqüestrado o clérigo.

- Não creio que este caso tenha qualquer fundamento - disse o premier, um forte aliado de Bush.

Ontem, no entanto, Berlusconi alfinetou seu aliado num outro caso, ao afirmar que será "absolutamente inevitável" condenar os EUA se ficar comprovado que forças americanas utilizaram fósforo branco indiscriminadamente numa ofensiva na cidade iraquiana de Faluja em 2004, atingindo civis, como denunciou a TV italiana RAI no mês passado. O fósforo branco é uma arma incendiária cujo uso é regulado pela ONU. O Pentágono negou tê-lo usado contra civis.

A ordem de prisão de Nasr é automaticamente válida nos 25 países da União Européia (UE), sem a necessidade de aprovação de qualquer governo, graças a um acordo feito na época do 11 de Setembro, quando o bloco se uniu na luta contra o terrorismo. Segundo o acordo, qualquer membro da UE pode pedir a outro que prenda um suspeito.

Funcionários da Justiça italiana disseram acreditar que Nasr, também conhecido como Abu Omar, esteja ainda sob custódia do Egito. Investigadores italianos o acusam de ligações com a al-Qaeda e de recrutar combatentes para o Iraque. Um juiz de Milão já emitiu uma ordem de prisão contra ele. Antes de o clérigo desaparecer, em fevereiro de 2003, ele estava sendo monitorado por agentes italianos.

A Justiça da Itália reuniu uma ampla documentação sobre a permanência dos agentes da CIA no país. Segundo um documento, aproximadamente um ano depois de ser preso Nasr teve permissão para dar dois telefonemas: para sua mulher, Ghali Nabila, e para o líder religioso Mohamed Reda, em Milão. Nas conversas, ele disse ter sido enviado a Alexandria e ter sido torturado com choque elétrico e exposição a temperaturas e barulho extremos.

No último dia 6, o "Washington Post" disse que na época do desaparecimento de Nasr a polícia antiterrorismo italiana foi informada pela CIA que o clérigo fugira para os Bálcãs. Citando documentos da Justiça italiana e entrevistas com investigadores, o jornal disse que a CIA mentiu deliberadamente para enganar a polícia italiana, já que teria capturado secretamente o clérigo e o levado para o Egito.

Advogada de um dos 22 agentes, Daria Pesce reconheceu que eles poderão ser presos se forem à Europa.

- Este é o único problema - afirmou, indicando dar pouca importância à ordem judicial.

Num outro caso da Justiça italiana que incomoda os EUA, divulgado anteontem, juízes investigam um fuzileiro naval americano devido à morte de um agente italiano no Iraque. Em março, o agente Nicola Calipari acompanhava uma refém italiana que acabara de ser libertada quando o carro onde os dois estavam foi alvo de tiros disparados de um posto de controle americano.

Os vôos secretos

Pelo menos oito países europeus - entre eles Espanha, Alemanha e Noruega - estão investigando se a CIA violou leis internacionais ao transferir suspeitos de terrorismo para países onde a prática de tortura seria tolerada, como Egito, Paquistão, Jordânia e Afeganistão. Segundo o grupo de direitos humanos Anistia Internacional, a agência de inteligência americana realizou cerca de 800 vôos ilegais nos últimos anos, muitos deles com escala na Europa.

As operações dessa natureza da CIA no exterior seriam consideradas pelos EUA práticas legais e eficazes na luta contra o terrorismo, com o apoio de governos locais. Mas legisladores e promotores de Justiça europeus questionam a legalidade das ações.

O governo George W. Bush nega torturar presos, mas fazia uma distinção para o tratamento "cruel, desumano e degradante", recorrendo a uma brecha legal para afirmar que a Convenção contra a Tortura (CAT, da ONU) não impediria esse tipo de tratamento fora do território americano. Na prática, isto significaria que poderia transferir presos para países que adotariam a tortura em interrogatórios.

No início deste mês, a secretária de Estado americano, Condoleezza Rice, fez uma tensa viagem pela Europa procurando afastar suspeitas.

- As obrigações dos EUA nos termos da CAT, que proíbe o tratamento cruel, desumano e degradante, estendem-se aos funcionários americanos onde quer que eles estejam, seja nos EUA ou fora dos EUA - afirmou Condoleezza, aparentemente indicando uma mudança na postura do governo Bush em meio às pressões internacionais.

No último dia 13, um mês depois de iniciar uma investigação, o Conselho da Europa informou dispor de dados que reforçam a credibilidade das denúncias sobre os vôos secretos da CIA.

Legenda da foto: O PROMOTOR ARMANDO Spataro: pedido ao governo Silvio Berlusconi para que os agentes americanos sejam extraditados